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Entre mesas e bancos de praça: o trajeto simbólico da comida de um restaurante ecológico

O foco deste estudo está nos significados da comida de um restaurante vegetariano localizado na região central de Pelotas, Rio Grande do Sul. Esse restaurante comercializa uma grande variedade de alimentos produzidos sem utilização de agrotóxicos – como tomate, alface, berinjela, feijão, arroz integral, pães, cucas, doces, bolos -, além de uma gama de itens direcionados aos cuidados com a saúde.  São alimentos produzidos por agricultores familiares, vinculados a grupos como o Centro de Apoio aos Pequenos Agricultores (CAPA) e a Associação Regional de Produtores Agroecológicos da Região Sul (ARPASUL), entre outros. Além de comercializar refeições, a comida também é distribuída gratuitamente por membros sócios do restaurante.

bufe_saladas.jpgAtendendo a um grupo bastante heterogêneo – advogados, professores, estudantes universitários -, esse restaurante agrega discursos e princípios diferenciados no tocante às concepções alimentares que atraem seus clientes. Até as três horas da tarde, o almoço é servido em buffet, do qual faz parte uma extensa mesa minuciosamente preparada com as mais variadas e coloridas frutas, verduras e legumes, além de sucos de melancia, uva, laranja, mamão e morango.

Outro grupo de consumidores, talvez mais heterogêneo ainda, alimenta-se mais tarde, das sobras alimentares do estabelecimento, que diariamente distribui a comida não consumida pelos pagantes*. A cada dia, por volta das três horas da tarde, os consumidores nãopagantes – catadores de material reciclável, guardadores de carros, desempregados e albergados – posicionam-se em fila, do lado de fora do estabelecimento. Receberão a comida quando todos os consumidores pagantes tiverem se retirado. Essas duas formas de comensalidade e as diferentes percepções a elas relacionadas constituem o tema deste estudo.

No tocante à alimentação consumida no local, os consumidores pagantes proferem dois princípios básicos, que orientam as relações que estabelecem com a comida.

O primeiro, observa as concepções embutidas na noção político-ideológica presente na produção agroecológica de alimentos e congrega tanto um posicionamento crítico diante dos efeitos da monocultura quanto uma preocupação voltada às concepções de saúde que revestem a alimentação natural, saudável, sem agrotóxicos e conservantes:

A questão não é bem só a alimentação. A questão é o que vem historicamente, assim… A questão de como ela chega à mesa, que é baseada em uma agricultura familiar, que não usa nada de agrotóxico. (Hiran, consumidor pagante).

comendo_dentro.jpgOs produtos direcionados à cooperativa, segundo os informantes pagantes, assumem um apreço que se assenta nas origens, nas circunstâncias em que são produzidos e no discurso ideológico que envolve a prática de seus produtores, propiciando, assim, uma junção quase holística pela qual meio ambiente, corpo e sociedade se atravessam, dando um sentido ao comer e à comensalidade que vai além dos contornos físicos do restaurante vegetariano, atingindo as elaborações ideais de um viver e pensar-se no mundo. Aqui, a comida emerge muito além das necessidades fisiológicas, delineando-se como um portal de acesso às idéias que marcam identidades em um sistema cultural.

Na condição de que todos os clientes pagantes tenham partido e ainda observando as regras requeridas pelos funcionários do restaurante – não fumar, não beber, não sentar-se às escadas, não produzir lixo e não comer no local – os consumidores não-pagantes aguardam a vez de almoçar. São sujeitos provenientes de bairros que compõem a periferia da cidade, como Navegantes, Areal, Fátima, Simões Lopes e Caatinga, além daqueles indivíduos que dormem nas ruas, nas entradas de lojas e, ademais, os hospedados no único albergue da cidade.

comida_no_saco.jpgChegada a hora da distribuição, os guardadores de carros, catadores de material reciclável, desempregados, "moradores de rua", artesãos e senhores aposentados organizam-se em fila, na ordem de chegada ao local.  A espera da comida se dá no pátio interno do restaurante, demarcado pelas escadas e pelo muro frontal. O sinal que confirma a proximidade da hora do almoço para essas pessoas é dado quando uma funcionária começa a encher os sacos plásticos transparentes de arroz integral, feijão, abóbora, berinjela, bolinho de legumes, omelete e pastéis de queijo. Em seguida, a porta se abre e os sacos de comida são distribuídos, um a um, em silêncio e rapidamente. A grande maioria dos beneficiários se dirige, então, para o outro lado da rua, formando pequenos grupos junto às raízes das árvores, nos bancos e nos canteiros da Praça Coronel Pedro Osório.

Apesar de indicar as propriedades que valorizam essa comida, como fibras, vitaminas, carboidratos, Rodrigo, um informante, afirma que a comida que compra em outros restaurantes é muito boa porque ‘‘vem galinha”. Seu Chico, sogro de Rodrigo, guardador de carros no local há mais de 20 anos, diz não comer a comida distribuída, preferindo comprar arroz, feijão, massa e galinha em outros restaurantes. Ainda assim, para Rodrigo, a comida ecológica é boa porque "tem fibras, vitaminas, carboidrato… Hoje tinha umas coisas muito diferentes… Verdura naturalista, mas tinha umas florzinhas muito loucas…".

Trazendo o modo como são pensados os efeitos dos alimentos sobre o corpo e seus estados, reinterpretando os conhecimentos da fisiologia corporal, Willian, guardador de carros, elucida questões que se colam à idéia de nutrição e à sensação de saciedade trazida pela comida, considerada rica e poderosa na eficácia do afastamento da sensação de fome porque "tu come isso aí agora e eu quero ver tu ficar com fome tão cedo!" (Willian, consumidor não-pagante).

Misturados ao arroz integral, feijão, verduras, legumes e hortaliças de todo o tipo, os desejados bolinhos de arroz e pastéis de queijo são distribuídos aos comensais não-pagantes. Todavia, nem todos recebem esses apreciados itens, fato que é capaz de provocar disputa entre eles. O desejo em ser contemplado  com as iguarias demonstra a preferência por aqueles elementos que podem proporcionar a sensação de saciedade, preenchimento, força e integridade.

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Há que ressaltar, ainda, a carga expressiva das maneiras do comer no lado de fora, uma vez que o saco plástico em que a comida é distribuída aos não-pagantes não é dispensado, mas torna-se constitutivo de uma técnica do comer (Mauss, 1974: 419). Mordendo o saco plástico na base, esses consumidores sugam gradativamente a comida, sem auxílio de utensílios usualmente presentes nas refeições realizadas em restaurantes e residências familiares. Assim, a comida vai sendo empurrada com as mãos para a abertura decorrente da mordida certeira.

Robson, de 22 anos, realiza serviços como limpeza de terrenos, guarda de carros e, eventualmente, faz pedidos de "moeda pra dar uma ajuda" nas portas de entrada de restaurantes e padarias. Rejeitando a alimentação doada pelo restaurante ecológico, por ser muito "sem sal, mal temperada", ele afirma que comer em sacos plásticos é pensar-se como um bicho, "mas ninguém é bicho!". Da mesma forma, Miguel, coletor de material reciclável, posiciona-se depreciando o modo de comer em sacos plásticos, sem manusear pratos e talheres: "só como assim, com as mãos, quando tô com fome".

Diferenciar-se, ao comer, de outros grupos sociais, parece favorecer a aproximação desses sujeitos do plano da natureza. Contudo, por outros elementos intermediários – talheres, copos, pratos, sacos plásticos, palavras e idéias – é possível a realização de um "cozimento simbólico" (Gonçalves, 2006: 68), que representaria um esforço de afirmar, nos detalhes, os aspectos culturais e sua supremacia sobre a natureza, o selvagem, o bicho.

bufe_pratos_quentes.jpgA comida comercializada no restaurante ecológico, então, se mostra fragmentada no tocante aos significados que assume e que permitem sua atualização. Produzida por agricultores ecológicos, a produção alimentícia percorre trajetos que contornam e possibilitam a flutuação de seus sentidos de acordo com as cambiantes concepções de mundo do heterogêneo grupo que a consome.

Assim, passando por organizações que imputam princípios político-ideológicos, os significados se dissipam e se revestem no seio dos discursos que compõem o vegetarianismo, o equilíbrio físico e mental, a medicina tradicional, a força para trabalhar, a estética do corpo, a sensação de saciedade. Essa alimentação – bem como as peças móveis que compõem a comensalidade e tudo aquilo que dela emana no escopo de ordenar semelhanças e diferenças sociais – é, portanto, reelaborada simbolicamente na medida em que percorre diferentes grupamentos e espaços, demarcando, ainda que provisoriamente, identidades e cosmovisões.

Um caminho alimentar que vai de prática de respeito e relação harmônica com o meio natural, disposição ativa, até alcançar as margens de "verdura naturalista, florzinha muito louca", continuando seu percurso em todas as direções.


prato.jpg* Nota dos autores:

 Em termos analíticos, adotam-se neste estudo as categorias pagantes e não-pagantes, para designar respectivamente os consumidores que pagam pela alimentação, consumindo-a no ambiente interno do estabelecimento, e aqueles que aguardam as sobras de comida, distribuídas pelos funcionários, que serão consumidas do lado de fora do recinto.

REFERÊNCIAS

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. Estudos históricos, Rio de Janeiro, 33, p.40-55, 2004.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, vol. 1, 1974.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006.


* Tiago Lemões da Silva  é graduando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e membro discente do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia desta Universidade. Cláudia Turra Magni  é doutora em Antropologia Social e professora do Instituto de Ciências Humanas da UFPel.

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