Prazeres da mesa

Eno-Eco-Neo: História em Três Atos

Por alimentos de qualidade, pelo direito ao prazer, ao convívio à mesa e a um ritmo de vida lento – como os princípios básicos do Slow Food ganharam o mundo.

Prazeres da mesa

Em meu arquivo pessoal conservo um artigo, desgastado e com bordas amareladas, que recortei do jornal britânico The Guardian em 1989. É uma peça histórica e ao mesmo tempo um pedaço de história. Ele descreve um estranho movimento novo, fundado por um grupo de amigos em uma pequena cidade no norte da Itália. Um movimento “enogastronômico”, cujo objetivo seria defender alimentos de qualidade, o direito ao prazer, ao convívio à mesa e a um ritmo de vida lento. Para definir a experiência, o próprio fundador do grupo, Carlo Petrini, falava de “loucura insana”. Não é de estranhar que o jornalista inglês que escreveu o artigo tenha ficado um pouco perplexo. Acredito que esse tenha sido um dos primeiros artigos em inglês sobre o Slow Food. Sim, com certeza foi um dos primeiros porque o movimento surgiu justamente em 1989 na Opéra-Comique em Paris, onde representantes de 20 países se reuniram para assinar o Manifesto, escrito pelo poeta e intelectual Folco Portinari.

 

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O Slow Food viu o alimento em um sentido amplo – ingredientes, produção, consumo –, como uma apoteose de culturas inteiras e de prazeres pessoais. Em 1996, para apoiar a filosofia, criaram-se o evento Salone del Gusto, uma quermesse mundial de exposição e venda de alimentos, e a revista Slow – Messaggero di Gusto e Cultura. A publicação, em particular, era de fato lenta, como o nome sugere: o primeiro número foi uma homenagem a tudo o que é lento, do caracol ao tango argentino e ao ritual espanhol das tapas. Assim escreveu Manuel Vázquez Montalbán, um dos muitos defensores do movimento desde seus primeiros dias: “Não consigo entender por que ninguém nunca pensou em proclamar as tapas como expressão alimentar de um estilo de vida, no qual se prova de tudo, se conversa muito durante tal processo, bebe-se de forma inteligente e se chega à difícil conclusão de que, em pequenas doses, o mundo é belo”. A lentidão proclamada como estilo de vida. O primeiro número da revista Slow foi concluído com o artigo “Elogio della lentezza” (“Elogio à lentidão”), no qual Carlo Petrini discorre sobre o símbolo eleito do movimento, o caracol, antes de abordar novas perspectivas, aparentemente distantes, mas de fato mais próximas do que pareciam. “Assim como os caracóis são amigos dos vinhedos, das uvas nasceu um novo motivo de solidariedade. Nosso planeta está gradualmente sendo invadido por fileiras de videiras cada vez mais longas e densas. Não há espaço que não seja utilizado.” Era meados da década de 1990 e “eno” já estava se transformando em “eco”.

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Foi inevitável que o Slow Food ampliasse sua perspectiva para acolher, além da qualidade de vida, a própria sobrevivência do planeta Terra. Na revista Slow 17, o editor Alberto Capatti escreveu: “O Slow Food é uma associação que evita festas com grandes pompas e formalidades. Não encoraja o culto às preparações e aos menus ‘históricos’, no entanto, está profundamente associado aos valores da terra e do passado. A preservação de produtos típicos, a proteção das espécies contra a manipulação genética, o culto à memória e a educação do paladar – todos são aspectos de nossa paixão pelo tempo […] Um punhado de trigo sarraceno na sopa, uma pitada de noz-moscada, a fumaça da carne grelhada – todos esses alimentos são pistas que nos levam de volta ao passado; indícios de humanidade. Pois bem, vamos segui-las”. Para resumir essa longa história: foi precisamente ao seguir tais pistas que o Slow Food entendeu que o convívio à mesa é belo – para não dizer indispensável –, mas que também, uma vez que a refeição tenha acabado, é um hábito saudável dar uma caminhada pelo campo e, se necessário, colocar as mãos na terra. Com o slogan “Defender a Biodiversidade Agroalimentar”, o Slow Food passou a se comprometer com a proteção dos alimentos tradicionais, conservando os métodos de cultivo e processamento e defendendo as espécies selvagens e domésticas. A associação combinou respeito, estudo e conhecimento da cultura enogastronômica, com o apoio a todos aqueles que, ao redor do mundo, produzem alimentos de maneira sustentável.

Ao tornar-se internacional, o Slow Food precisou tratar novas problemáticas, explorar novos territórios e saborear novas cozinhas. Deve-se dar um passo depois do outro, mas, nesse momento, tratava-se de dar um grande passo. Para tornar o caminho mais fácil, nasceram, em ordem cronológica, a Arca do Gosto, programa que identifica, cataloga e descreve sabores praticamente esquecidos e em risco de extinção; as Fortalezas, projetos que apoiam produtores familiares, raças de animais nativos e antigas variedades de verduras e frutas em risco de extinção, valorizam os territórios, recuperam as técnicas tradicionais de produção; o Prêmio Slow Food para a Defesa da Biodiversidade foi criado em 2000 para reconhecer e apoiar atividades de pesquisa, produção, divulgação e catalogação, em favor da agrobiodiversidade. O ano de 2004 viu o nascimento de uma manifestação que, se não foi revolucionária, foi ao menos inovadora – o Terra Madre. O encontro internacional de comunidades do alimento, para o qual o Slow Food convida os verdadeiros “intelectuais da terra e do mar” com toda a sua bagagem de sabedoria e conhecimento, representantes de milhões de pessoas que produzem alimentos, mas também respeitam a qualidade, o planeta e o trabalho humano. Depois de se conhecerem, os participantes mantêm contato. Terra Madre é acima de tudo uma rede. Aliás, a mãe de todas as redes. Um modelo de diálogo, fraternidade e solidariedade.

Sua Alteza Real, o príncipe Charles, da Inglaterra, resumiu tudo isso em seu discurso de encerramento no primeiro evento Terra Madre. “O alimento que vocês produzem é muito mais do que meramente alimento, uma vez que ele representa toda uma cultura. O amor à terra, as memórias de infância, o conhecimento e a sabedoria aprendidos de pais e avós, o entendimento íntimo das condições climáticas locais, as esperanças e o medo das gerações futuras são elementos indispensáveis. Senhoras e senhores, todos vocês representam genuinamente a agricultura sustentável e, por isso, eu os homenageio.”

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A elaboração do pensamento de uma neogastronomia, culta e ecossensível, entendida como liberdade de escolha, como educação, como uma abordagem multidisciplinar dos alimentos, não é um passo adiante em relação à ecogastronomia. É uma evolução paralela e lógica. Seu manifesto é o livro de Carlo Petrini, Slow Food, Princípios da Nova Gastronomia. Sua bandeira é a Universidade de Ciências Gastronômicas que se encontra em Pollenzo (Itália). Informados e atualizados a respeito de onde, como, por que e por quem o alimento é produzido, os neogastrônomos não se veem como consumidores, mas “coprodutores”, sujeitos ativos e conscientes de todas as implicações e consequências de suas escolhas de compra. Para eles, o alimento deve ser bom, limpo e justo. Bom, porque é saboroso, fresco, sazonal, capaz de satisfazer os sentidos. Limpo, porque é produzido sem causar danos aos recursos da terra, sem prejudicar a saúde humana. Justo, porque oferece uma adequada remuneração e condições decentes de trabalho para todos os envolvidos na pequena cadeia de fornecimento: da produção à comercialização e ao consumo.

Os neogastrônomos adotam uma abordagem crítica, porém construtiva sobre o ato de comer. São pessoas apaixonadas pelo alimento e pelo vinho, mas que também querem salvar a agrobiodiversidade do mundo. Para o neogastrônomo, comer não é apenas uma necessidade biológica, mas também um prazer social a ser compartilhado com os outros e uma forma de consumo responsável que tem efeito direto sobre o mercado e, consequentemente, sobre a produção de alimentos. Aprender sobre os sentidos, para entender e apreciar o alimento e tudo o que ele representa é uma maneira de adquirir valores e compreender melhor o mundo que nos cerca.


Prazeres da mesa

Palavras-chave

Convivium
Esse substantivo em latim (plural: convivia) evoca o verbo cum vivere, “viver juntos”. O Slow Food escolheu a palavra convivium para denotar os grupos locais nos quais seus associados estão organizados. Os convivia organizam degustações e seminários, promovem as campanhas em nível local, defendem os alimentos locais, promovem projetos de educação do gosto em escolas e participam de grandes eventos internacionais do Slow Food.

Comunidade do alimento
O termo foi inventado para o primeiro evento Terra Madre e se refere à cadeia estendida de fornecimento de alimentos que inclui desde os produtores de alimento até os vendedores, ou seja, todos os profissionais que permitem que o alimento de qualidade seja produzido, distribuído e consumido, e assim continue a representar um recurso ambiental, social e cultural.


Texto de John Irving, escritor e colaborador do Slow Food / Tradução Mader Produções. Publicado na Revista Prazeres da Mesa

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