Fala do presidente da Fundação Internacional Slow Food para a Biodiversidade sobre os queijos artesanais do Brasil

Compartilhamos com vocês uma fala de Piero Sardo, presidente da Fundação Slow Food para a Biodiversidade, gravada especialmente para os participantes do I Encontro Nacional do Grupo de Trabalho do Slow Food Brasil sobre Queijos Artesanais e do I Simpósio de Queijos Artesanais do Brasil, realizados em Fortaleza, em novembro de 2011.

Piero Sardo acompanha a campanha internacional do Slow Food em defesa dos Queijos Artesanais de Leite Cru (i.e. não pasteurizados) e foi contatado para participar desses dois eventos no Brasil. Mostrou-se bastante sensibilizado ao saber que nossos produtores de queijo enfrentavam dificuldades junto à legislação sanitária semelhantes às enfrentadas pelos produtores de queijos tradicionais da Europa. Ao final a vinda de Piero ao Brasil não foi possível mas ele gravou este vídeo e se dispôs a apoiar as ações realizadas por nós, num diálogo que está aberto e que irá se aprofundar no Terra Madre & Salone del Gusto de 2012, com a realização de uma “Conferência sobre Leite Cru nos Trópicos”, que contará com a participação de cinco produtores de queijo artesanal do Brasil.

Se o vídeo não estiver aparecendo, clique aqui.

Abaixo transcrevemos a tradução da fala de Piero Sardo no Vídeo

Bom dia a todos.

Bom dia, de modo especial, aos produtores que participam desta reunião tão importante. É realmente uma pena não poder estar aí com vocês, pois trata-se de um evento muito importante, e muito interessante.

O tema que estão tratando, envolve o Slow Food inteiro, e o mundo inteiro, com vários níveis de responsabilidade e vários níveis de operacionalidade. Mas a associação toda sabe que o tema do leite cru é fundamental, um dos temas-chave, que contou com a nossa presença em diversos momentos, com diversas Fortalezas e campanhas internacionais.

O Brasil é, com certeza, um país que se aproxima pela primeira vez deste tema. Tudo parecia tranquilo, parecia que estas evoluções históricas não tocariam o Brasil, mas não: há sinais que aí também o governo quer tomar medidas contrárias à produção do leite cru.

Mas então surge, uma pergunta, absolutamente espontânea: qual a razão desta atitude criminalizante em relação ao leite cru? Porque há uma atitude diferente em relação ao sushi, às ostras, ou às carnes que se comem cruas? Porque este afinco – pois sim, é um verdadeiro afinco – contra o leite cru. Porque por trás há interesses enormes. Há as grandes empresas, as grandes multinacionais que querem ter a liberdade de comprar o leite onde mais lhe convém – onde o preço for mais baixo – e querem processá-lo com métodos que nada têm a ver com os métodos artesanais, naturais, bons. Estes lobbies, presentes em qualquer lugar, pressionam os governos, em nome da segurança alimentar, que parece ser um tema que assusta, que alerta o consumidor. Pois bem, chegou a hora de dizer com clareza que o tema da segurança alimentar em relação ao leite cru é um espantalho, exagerado e, em alguns casos, até falso. Pois a questão não é apenas o processamento do leite cru, o problema verdadeiro é que o leite de origem, o leite com o qual se produz o queijo, deve ser um leite de qualidade. É isto que as instituições devem garantir. Devem garantir que os animais sejam sadios, que não tenham doenças como tuberculose ou brucelose, e que os métodos de produção respeitem a higiene necessária. E que nós, no Slow Food, sempre defendemos a higiene. Mas se o leite for de qualidade, se os animais forem sadios, se os procedimentos previstos são cumpridos, a produção do queijo a partir do leite cru é a única forma de garantir a excelência, a única forma de garantir a biodiversidade.

E isto tudo é ignorado, como se não houvesse diferença nenhuma entre a produção com leite pasteurizado e com leite cru.

Pois bem, é preciso repetir com clareza que a única forma de produzir qualidade, qualidade de alto nível, é a partir do leite cru. Independentemente do bom. Porque o consumidor poderia dizer: “a segurança de um lado, o bom do outro. Pois talvez eu prefira comer produtos um pouco mais padronizados, mas ficar mais tranquilo”. Eu acho que a aposta é muito alta, aqui estamos discutindo um conceito de liberdade de escolha. Isto é: o consumidor deve ter a liberdade de escolher o que ele quer comer. O rótulo deve declarar de forma clara se o queijo é produzido com leite cru ou com leite pasteurizado. Se foram utilizados fermentos industriais ou não, e uma vez que o rótulo conter estas informações, o consumidor deverá ter o direito de escolher. O “DIREITO”. E ele vai escolher o leite cru, porque é uma forma de garantir uma boa refeição, um bom queijo, uma boa qualidade organoléptica.

E não é apenas isto: o tema da liberdade é fundamental. Por isto peço seu apoio, peço que aprofundem estas informações.

Mas há também o tema da biodiversidade, como estava dizendo agora há pouco: quando se destrói toda a flora bacteriana presente num determinado lugar e num determinado leite, se está produzindo uma seleção violenta da biodiversidade. Uma biodiversidade microbiana, que não se enxerga, e que por isto desperta menos a emoção. Mas se trata de uma biodiversidade: qualquer lugar de produção, qualquer fábrica de queijo tem sua própria biodiversidade. Se a gente a destruir em nome de uma declarada segurança alimentar, para inserir uma única bactéria selecionada, quase sempre produzida industrialmente, a gente estará atuando uma seleção violenta desta biodiversidade que, infelizmente, não se vê. Como também não se vê a situação de nossos oceanos. Porque que o nosso oceano é tão penalizado em relação a outras situações de biodiversidade, como a floresta, as áreas lacustres, ou os animais em vias de extinção? Porque, infelizmente, debaixo d’água não conseguimos enxergar o desastre que está sendo cometido. E a mesma coisa acontece com as pequenas microfloras locais, com o conjunto de bactérias que atuam na produção do queijo. Não se enxergam, e portanto podem ser tranquilamente destruídas, utilizando bactérias produzidas artificialmente.

São estes os três temas que temos pela frente: a qualidade organoléptica, a liberdade, a biodiversidade. Não desconsiderem este compromisso, não desconsiderem a defesa dos queijos de leite cru, pois trata-se de uma batalha não apenas gastronômica, mas também de civilização. Uma batalha com uma importância  muito mais abrangente daquilo que parece.

É por isto também que criamos um website – não deixem de utilizá-lo! – é uma verdadeira campanha internacional, em muitos idiomas, defendendo o leite cru. E nós, sempre estaremos a seu lado.

Desejo a todos um bom trabalho, e espero realmente que os resultados desta reunião possam ser comunicados ao mundo inteiro, com um sentido novo, importante para uma país tropical como o Brasil que tem, naturalmente, alguma dificuldade a mais para produzir queijos de leite cru. Mas é justamente por isto que seu compromisso é ainda mais merecedor.

Piero Sardo – Presidente da Fundação Slow Food para a Biodiversidade

Outubro/2011


Bibi Cintrão, Denise Gonçalves e Fabiana Thomé da Cruz são membros do Grupo de Trabalho sobre Queijos Artesanais do Slow Food Brasil

 

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