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Radite, entre hortas, matas e memórias

DSCN6218 2As pequenas hortas do assentamento de reforma agrária 12 de Julho são abarrotas de plantas bem à moda brasileira, carreiras de mandioca e batata-doce que predominam por entre algumas humildes mudas de alface e pés de tomate. São hortas como tantas outras hortas rurais e urbanas espalhadas por nosso país. No entanto, por entre as fileiras destas hortaliças encontramos muitos pés de radite, uma planta também bem conhecida, apesar de não tão habitual em nosso cotidiano alimentar e que chama atenção não por estar presente nestes lugares, mas por predominar em diversidade e em quantidade em praticamente todas as casas deste assentamento. Em outras palavras, é muita radite para pouca mesa.

 Sejamos sinceras, ninguém come tanta radite assim, é uma planta um tanto embotada em relação a plantas como a mandioca e o feijão, ela fica meio de lado até mesmo entre as muitas receitas de Plantas Alimentícias Não Convencionais que circulam pela internet. As agricultoras assentadas também não comem essa salada todos os dias, mas definitivamente a elegeram como planta favorita para ser cultivada em suas hortas e forrageada campo afora. 

Radite, aqui, é um termo genérico para uma pluralidade de folhas comestíveis amargas forrageadas ou cultivadas por um grupo de agricultoras de ascendência italiana assentadas há trinta anos no 5° distrito de Canguçu, cidade sul-rio-grandense, através do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Peço, assim, por gentileza, que nos desapeguemos por alguns minutos de classificações botânicas. Com isso não estou dizendo que para as assentadas do 12 de Julho toda folha amarga é radite, mas muita folha amarga pode vir a ser uma radite.

Radite pode ser o pão-de-açúcar, o almeirão, a língua-de-vaca, o piçacam ou a serraia (serralha). E, de qualquer modo, nenhuma dessas é muito presente em nossas mesas. Pode ser planta de capoeira, daquelas que dão no mato, mas também pode ser planta cultivada na horta e, como vimos logo acima, muito bem cultivada. 

Desde 2016 mantenho uma relação de pesquisa em antropologia junto a estas agricultoras e há tempo me pergunto o motivo de elas catarem e terem tanta radite plantada, embora não a comam com tanta frequência. Para que plantar tamanha quantidade, quando só se vai comer de vez em quando? Meu convívio com elas, ao longo destes anos, me mostrou que cultivar radite é cultivar a lembrança de um ente querido. Ter muita radite na horta é poder, sempre que quiser, olhar pela janela e lembrar que, durante a infância, o pai saía sempre para catar radite, que na hora do almoço vinha à mesa em saladas. Ainda, lembrar que, depois de já crescidas, também elas saíam junto com o pai ou a mãe para catar tal planta. 

DSCN6219 2Não se come radite com muita frequência, ou, melhor dizendo, quase nunca se come radite, mas, ainda assim, um pouco se come. Aliás, é um alimento bem enraizado não só nas hortas, mas também nos pratos de dias especiais e na memória das assentadas. Podemos dizer que essas folhas amargas são quase um alimento ritual: come-se radite quando se quer contar a algum visitante sobre os primeiros anos de assentamento, quando um parente distante que adora comer radite está de aniversário ou quando se sonha com um ente querido já falecido, provavelmente alguém que ensinou a agricultora a catar e a comer o amargor daquelas folhas verdes. Contar a relação entre essas mulheres e a radite é descrever, também, um pouco da história deste assentamento de reforma agrária, que com três décadas de existência carrega na trajetória de seus agricultores e agricultoras a história do movimento social que os assentou, o MST. 

As mulheres do 12 de Julho assentaram no município de Canguçu em 1989. Quando chegaram às terras que lhes foi destinada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), encontraram lavouras de soja abandonadas e tiveram que recriar boa parte daquela paisagem. Por sorte, mulheres que plantam têm aquele velho hábito de levar uma mudinha daqui para lá ou uma sementinha de lá para cá. Essas agricultoras chegaram às novas terras com estacas de mandiocas, estacas de cana-de-açúcar, sementes de feijão etc. No entanto, a radite não assentou com elas, diferentemente das demais plantas de horta e de roça do assentamento, esta planta já estava espalhada pelas capoeiras e matas do local. Ao chegarem em Canguçu, as agricultoras iniciaram uma prática que persiste viva até hoje, catar planta na mata, que se mostrou tão essencial na transformação do território assentado quanto trocar mudas e sementes, pois se plantar estacas de cana-de-açúcar possibilitou um processo de descompactação do solo, a coleta de radite dava comida para as famílias recém-chegadas, além de ser prática que fomentou o conhecimento das nascentes de água e de muitas outras plantas nativas que se abrigam nas matas. 

Nos três primeiros anos do assentamento, o forrageamento de radite foi essencial para a alimentação dos assentados. Hoje, trinta anos depois, a velha conhecida segue como companheira das agricultoras, agora não mais como alimento cotidiano – afinal, há arroz, feijão e carne para comer. 

É quase impossível fazer uma visita a alguma parente, seja do outro lado do estado ou vizinha de lote, e não trocar com ela alguma plantinha. As radites, no entanto, não são tão interessantes para as agricultoras nos momentos de trocas de plantas entre parentes. A radite ganha destaque em outro processo de troca, na relação das agricultoras com as matas e capoeiras do lugar. Depois de forrageada, a radite é plantada nas hortas onde assementa, isso é transforma-se em semente, dando origem a uma nova radite, a de horta. As plantas habitam, assim, muitos espaços de circulação e convívio das agricultoras, lembrando que hortas normalmente ficam bem próximas às casas, e quando uma ocasião em especial surge – uma visita, um sonho, um aniversário ou uma saudade –, as radites estão bem ao alcance das mãos. 

Em certa ocasião, fui convidada por uma das assentadas para colher radite e prepará-la para o almoço. Perguntei se havia algum motivo especial para isso e descobri que naquela madrugada ela havia sonhado com seu pai já falecido. Havia sido com ele que ela aprendera a catar e comer radite, portanto, por terem se encontrado em sonho, era dia de se fazer isso. 

DSCN6223 2Também se come radite para recordar da terra natal. Essas mulheres são de uma região de mata atlântica, no extremo norte do Rio Grande do Sul, e hoje vivem no extremo sul do estado, no pampa. Almoçar ou jantar radite é quase como abrir um caixa de recordações ou um livro de fotografias antigas. Quando uma saudade muito forte abate alguma das agricultoras, elas saem para pegar radite e preparar para comer. Durante a refeição, o assunto será os antigos hábitos alimentares e outros afazeres da casa de seus ancestrais. Ter radite por perto ou sair para buscá-la em lugares de mata também é ter bem viva na memória seu pertencimento a comunidades de colonos italianos, que sempre gostaram de uma boa radite. 

E mais, essas são ações que também contam a história delas enquanto agricultoras, que deixaram a casa dos pais e ingressaram no MST. Afinal, o fato de terem assentado em uma terra tão degradada pela soja e terem conseguido transformar esses espaços em mandiocais, roças de miudeza, pastos e hortas é, em boa parte, culpa da radite, que nos primeiros momentos proveu o pão de cada dia. 

O ato de comer radite decorre do extraordinário: aniversário de um parente morto ou que vive longe, visitas que propiciam narrativas sobre o assentamento, sonhar com seus mortos etc. Nessas ocasiões especiais as agricultoras comem radite em saladas ou refogadas com toucinho de porco, alimentos que não estão presentes no cotidiano alimentar das assentadas. 

Cultivar e catar radite, portanto, é cultivar memórias afetivas, seja em relações de parentesco, ou com laços de ligação com a terra deixada no processo de assentar. Comer radite é recordar, é narrar uma história política, social e de vida escrita através de plantas nas hortas.


* Larissa Mattos da Fonseca é bacharel em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Brasília (UnB) e membro da equipe do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação, Consumo e Cultura (GEPAC).

Este texto é parte dos resultados da pesquisa realizada no processo de elaboração de seu Trabalho de Conclusão de Curso, Assentar gente e semente: circuitos domesticadores entre agricultoras e plantas no assentamento de reforma agrária 12 de Julho – RS.

Comments:

Raquel
21 de fevereiro de 2024

Que lindo seu texto! Crônica elegante e muito sensível! Só posso dizer: Parabéns e não pare!! Obrigada por compartilhar!!! <3

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