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Alimentação Escolar em Comunidades Tradicionais: avanços legais no acesso aos produtores e produtoras tradicionais

Um marco legal federal recém-aprovado pode contribuir com a segurança alimentar e nutricional nas escolas de comunidades tradicionais pelo país. A partir do exemplo da aplicação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Amazonas em comunidades indígenas, o Ministério Público Federal (MPF) tem recomendado um arranjo que contribuirá com a alimentação escolar e a renda dos produtores e produtoras tradicionais. O Slow Food tem contribuído com esta política pública com o povo Sateré-Mawé no município de Maués, Amazonas.

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Prefeito de Maués e produtores Saterés assinam o edital da alimentação escolar indígena. 
Foto: Assessoria de Imprensa de Maués/AM.

Em recente nota técnica (Nº 3/2020/6ªCCR/MPF), a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais expande para o território nacional uma experiência exitosa no estado do Amazonas. Desse modo, o MPF facilita o acesso dos produtores e produtoras tradicionais à política pública de alimentação escolar, o PNAE, e assim, contribui para o fortalecimento da soberania e segurança alimentar e nutricional nestas comunidades.

Esta nota se baseia no direito à alimentação escolar saudável e adequada, que respeite a cultura, as tradições e os hábitos alimentares dos povos e comunidades tradicionais, garantido pelo Decreto n° 6.040/2007 e pela Lei nº 11.947/2009 e no contexto de autoconsumo da produção alimentar nestas comunidades. A relação com a alimentação faz parte da dinâmica cultural e territorial dessas comunidades e, portanto, deve ser reconhecida e estimulada.

A alimentação escolar, por meio do PNAE e sua regulamentação na Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, estabelece a compra mínima de 30% (trinta por cento) da agricultura familiar com prioridade para os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas. Com isso, o cumprimento desta lei pode ser feito de modo a fortalecer as práticas tradicionais de produção alimentar e contribuir na qualidade dos alimentos nas escolas.

Uma vez que a alimentação escolar nestas comunidades tradicionais pode vir dos seus próprios produtores e produtoras, esta política pública pode contribuir na renda das famílias, na qualidade do alimento consumido pelas crianças e jovens e fortalecer os vínculos culturais que o alimento possui com seus territórios. Esta nota técnica do Ministério Público Federal pode desencadear um importante processo em todo território nacional.

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Dirlesson Michiles, jovem Sateré, e sua produção para a alimentação escolar na aldeia Ilha Michiles
Foto: Dilaerde Michiles

 Outro fundamento importante para a execução desta recomendação é a legislação sanitária. A Instrução Normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) nº 16/2015 dispensa o registro, inspeção e fiscalização para a produção e manipulação de produtos de origem animal para consumo familiar. Somado a isso, a Instrução Normativa nº 17, de 23/06/2015, do MAPA, traz regras sobre os produtos de origem vegetal, bebidas, entre outros. O uso dessas duas instruções gera uma sustentação importante para esta recomendação da alimentação escolar nas comunidades tradicionais.

Considerando que a dinâmica das comunidades tradicionais é baseada em interações familiares próximas, a relação escolar entre estudantes, professores, merendeiras, entre outros, é basicamente entre parentes. Dado que as duas instruções normativas acima, para produtos de origem animal e vegetal, possuem uma flexibilidade para a produção familiar, esta é a oportunidade legal apresentada nesta nota técnica do MPF. Esta é uma amarração fundamental para o desenvolvimento desta política pública da alimentação escolar.

O precedente legal para esta recomendação nacional é a experiência no Amazonas através da Nota Técnica nº 01/2017/ADAF/SFA-AM/MPF-AM, assinada pelo Ministério Público Federal no Amazonas em conjunto com a Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas – ADAF e a Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Amazonas – SFA/AM. A experiência inicial amazonense é voltada para os povos indígenas e já há alguns municípios executando projetos da alimentação escolar indígena.

Para isso, foi criada em 2016, no âmbito do MPF do Amazonas a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (CATRAPOA), a partir de denúncias sobre ausência de fornecimento da alimentação escolar em aldeias indígenas, devido à dificuldade logística, além da distribuição de produtos de baixa qualidade e industrializados, descontextualizados da cultura destes povos. A Comissão consiste em uma articulação entre instituições do terceiro setor, dos governos federal, estadual e municipais. Em vigência até hoje e com reuniões mensais, a Comissão é um espaço de diálogo e tomada de decisões de grande importância para o avanço do cumprimento do PNAE no Amazonas. Recentemente, com apoio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o Projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável da Agência de Cooperação Alemã (GIZ) foi publicado o “Guia Prático – Alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais”. O Slow Food Brasil faz parte desta Comissão e através desta parceria pudemos avançar com um edital em Maués. Contamos essa experiência com mais detalhes abaixo. 

Os resultados apresentados neste guia já são impressionantes: entre 2019 e 2020, 24 municípios do Amazonas, realizaram compras e entregas produtos em aldeias e comunidades indígenas, envolvendo aproximadamente 300 produtores indígenas, 20 mil estudantes e respectivas aldeias e comunidades. A Secretaria Estadual de Educação do Amazonas lançou um edital para a alimentação escolar no estado em um valor superior a R$ 30 milhões. Porém, este edital enfrenta muita dificuldade de execução para os mais de 150 inscritos, entre organizações e produtores individuais da agricultura familiar. Portanto, a operacionalização da política pública de alimentação escolar é um ponto central e precisa ser bem trabalhada nos órgãos públicos municipais e estaduais.

Mutirao-criancas-JoseGuedes.jpegMutirão das crianças, jovens, professores e comunidade na agrofloresta da comunidade Ilha Michiles.
Foto: José Guedes

O arcabouço gerado por estas normativas contribuiu com o disposto na lei nº 14.021, de 7 de julho de 2020, que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas. No artigo 10 desta lei, de maneira a facilitar o acesso a políticas públicas para garantir a segurança alimentar aos povos indígenas, às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais o conceito de autoconsumo é estendido e a fiscalização sanitária é dispensada.

Em nosso trabalho do Slow Food Brasil e Internacional com o povo Sateré-Mawé conseguimos contribuir na construção desta política pública municipal com diversos parceiros. A experiência foi relatada no artigo “Uma conquista rumo ao alimento bom, limpo e justo para todos: Merenda Escolar Indígena no Amazonas“. Deste modo, através da participação dos estudantes e professores do curso técnico em Agroecologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), campus Maués, na Terra Indígena Andirá-Marau pudemos realizar diagnósticos e consultas nas comunidades indígenas que serviram como base para a construção do edital junto à prefeitura de Maués. O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) teve uma contribuição importante no processo de inscrição dos produtores e produtoras no edital.

Neste contexto, ganhamos um prêmio de inovação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), relacionado com o tema da Educação Inclusiva e de Qualidade. Somado a isso, obtivemos o apoio da Embaixada da Suíça no Brasil para desenvolver o projeto “Apoio técnico aos produtores e produtoras indígenas Sateré Mawé na execução da política pública da alimentação escolar indígena”. Essa proposta veio no intuito de fortalecermos a execução desta política pública e contribuir na construção de um próximo edital municipal.

Esse processo de construção participativa da política pública da alimentação escolar é fundamental para que as lideranças indígenas, produtores(as) e demais atores sociais possam se apropriar desta dinâmica e assim consigam dar continuidade no PNAE no território indígena. Neste momento atual de pandemia, enfrentamos uma enorme dificuldade de operar as entregas da alimentação escolar, uma vez que as aulas foram suspensas e toda a dinâmica de emissão de notas fiscais na cidade e recolhimento dos pedidos perante a prefeitura. De todo modo, esperamos em breve retomar estas entregas. 

Por fim, esperamos que este texto contribua para que os demais territórios tradicionais no Brasil possam se apropriar deste conhecimento e experiências no Amazonas e executar esta política pública em suas comunidades. Através desta nota técnica do MPF esperamos que a alimentação na escola contribua com a segurança alimentar e nutricional das crianças e jovens e que possa melhorar a renda dos produtores e produtoras.

Recomendamos o documentário Mapana sobre a atuação da Associação de Mulheres do povo Tikuna no Alto Solimões no Amazonas e o livro de receitas da Neide Rigo “Amazônia à Mesa”, feito para contribuir na produção da alimentação escolar indígena. 

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