Um oásis no meio do sertão

POR ANA MOSQUERA

Projeto em defesa da sociobiodiversidade e cultura alimentar baiana insere novos produtos na Arca do Gosto, incluindo gado brasileiro e jabuticaba-do-cerrado

“O brejo é um oásis no meio do sertão”, comenta Cosme Alves de Souza, agricultor e presidente da Associação Comunitária Beneficente Brejo Dois Irmãos (ABDIPA). “Um lugar bonito, mas de difícil acesso”, ele mesmo continua, pois para chegar aos brejos de Pilão Arcado, na Bahia, é preciso atravessar um extenso banco de areia, também conhecido como areal. O isolamento natural, nesse caso, foi positivo, e acabou permitindo com que o gado brejeiro, adaptação local derivada da raça nativa curraleiro pé-duro, por exemplo, continuasse presente entre os camponeses do local.

A região, que fica na divisa da Bahia com o Piauí, na transição da Caatinga para o Cerrado, é composta por comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, caracterizadas pela criação dos animais de maneira solta, em área comunal. Extremamente adaptado ao ambiente do semiárido, o gado brejeiro é um deles: animal rústico, de pequeno porte, resistente a patógenos, manso e de fácil manejo. 

Além dos cascos fortes evidenciados no nome da raça relacionada, “pé-duro”, esse animal consegue ficar de quatro a cinco dias sem beber água, como conta o agricultor, e passa dias andando pelas veredas, como comenta o geógrafo Nathan Dourado Pereira, que, juntamente com as comunidades, fez a indicação do animal para a Arca do Gosto. Ambos fazem questão de frisar a dieta diferenciada do gado que aprendeu a executar essa atividade de cabeça erguida, em nome da sobrevivência, alimentando-se, assim, do fruto do buritizeiro, da folha do umbu e de outros vegetais de árvores e arbustos da paisagem local. Ele “come em cima”, como pontua Cosme sobre o boi de “berro”, de hábitos e de carne bastante únicos. 

A carne é saborosíssima, segundo Souza, e quando se mata um gado é um evento. E quem vai até lá garantir uns dois ou três quilos, tem que comer um pouco da “carne de dentro” (aquela que divide os órgãos) preparada na hora, acompanhada de pirão e arroz. “O problema do brejo é você conservar a carne. Tem que salgar”, ele bem lembra, já que o local não possui energia elétrica. 

À recente inserção do gado-brejeiro na Arca do Gosto e à atuação do Slow Food junto aos moradores das comunidades dos brejos, soma-se o trabalho de recuperação da raça que a Embrapa vem realizando desde a década de 1970. Para Marcos Jacob de Oliveira Almeida, membro da equipe de transferência de tecnologia e pesquisas de raças nativas brasileiras na Embrapa, o projeto do Slow Food é importante para valorizar a raça nativa, bem como sua criação em regime de pecuária sustentável, com agregação de valor ambiental e cultural. “Isso é fundamental para a conservação não somente da raça, mas do modo de criação e de suas relações com os povos que a criam”. E acrescenta, “Manter esse patrimônio genético é garantir a sobrevivência humana e o direito de escolha do que criar ou mesmo consumir.” Hoje, ele se dedica principalmente ao resgate e à reintrodução de raças nativas de galinhas, sendo uma das mais conhecidas a galinha canela-preta, que já integra a Arca do Gosto.

“A gente entende que a forma mais interessante de conservar a espécie é através do uso, para assimilar e criar outra imagem sobre a raça”, fala Nathan sobre a importância de incentivar os agricultores familiares na criação do gado nativo, que precisa deixar de ser visto como símbolo de atraso, mas sim de uma produção agroecológica, de uma raça criada solta e de bem-estar animal.

Outro produto recém aprovado para integrar a Arca do Gosto, e também presente na região dos brejos de Pilão Arcado, é o puçá, que, entre outros nomes, é conhecido pelos moradores como jabuticaba-do-cerrado. “É uma fruta de quintal”, como conta Revecca Tapie, facilitadora SF de projetos na região Nordeste, “O puçá não é cultivado em larga escala, é manejado em sistema extrativista. E está em risco de desaparecimento”. Os puçazeiros estão ameaçados pelo avanço da maior fronteira agrícola de Cerrado na área conhecida como MATOPIBA (acrônimo dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

O fruto – que, assim como a jabuticaba, nasce colado ao tronco da árvore, também com polpa suculenta e sabor doce – costumeiramente é comido in natura, e chega a perder no terreiro, como relata Cosme. “A gente não tinha a visão de pegar o fruto e fazer uma geleia, um doce, um licor. A gente fez um experimento com ele, colocou dentro da cachaça.” Dizem que ficou bom, ele conta, já que dessa água não bebe.

A principal atividade econômica local é a produção de cana e derivados, como açúcar, rapadura e a cachaça brejeira, para venda e consumo próprio. “Pra gente valorizar tem que colocar na alimentação”, finaliza Cosme, animado.

O gado curraleiro pé-duro, o gado brejeiro e o puçá estão entre os novos produtos inseridos na Arca do Gosto no contexto do Projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana. A iniciativa é fruto do convênio com o Projeto Pró-Semiárido, executado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional, ligada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (CAR/SDR), e conta com o apoio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA).

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No livro Gastroquinta: do quintal para a mesa (download), produzido pelo Portal Semear Internacional, a piauiense Perpétua Macêdo traz uma receita de geleia de puçá.

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