Queijo Colonial

Arca do Gosto // Queijos e produtos lácteos

História, cultura e valorização territorial no Sul do Brasil

por Clóvis Dorigon1

Breve história do produto e sua relação com a cultura regional

A produção de queijo colonial está associada à história da colonização da região Sul do Brasil. Também denominado de formáio, segundo o dialeto dos descendentes dos imigrantes italianos, o queijo colonial é um dos mais emblemáticos de um conjunto diversificado de produtos que no Sul do Brasil são conhecidos por “produtos coloniais”, assim denominados os tradicionalmente processados nos estabelecimentos rurais pelos pequenos agricultores familiares da região Sul, em sua maioria descendentes de imigrantes italianos, alemães e polonoses – os “colonos” – para o autoconsumo familiar, tais como salames e demais derivados da carne suína, queijos e outros derivados do leite, doces, geleias, compotas e sucos de frutas, conservas de hortaliças, massas, biscoitos, açúcar mascavo, melado, vinho, dentre outros produtos (DORIGON, 2008).

As áreas de sua produção correspondem àquelas colonizadas principalmente por descendentes de italianos e alemães. No Rio Grande do Sul, figuram a Serra Gaúcha e o Noroeste do Estado; em Santa Catarina o Oeste e, em menor quantidade o Sul do Estado e o Vale do Itajaí. No Paraná, o Sudoeste e o Oeste do Estado.

Figura 1. Paisagem típica da região oeste catarinense e o mosaico formado pelas pequenas propriedades. Fonte: Clovis Dorigon (2008)

Embora não existam dados precisos, estima-se que nos três estados do Sul do Brasil aproximadamente 30 mil famílias produzem o queijo colonial, totalizando cerca de 13 mil toneladas por ano.

Até o início dos anos 90 do século passado, tanto as atividades ligadas à produção do leite – a ordenha e o cuidado com os animais – como a produção dos seus derivados eram constitutivos da economia feminina2, sendo a produção do queijo colonial uma atividade desenvolvida pelas mulheres.

O queijo era produzido com o leite cru excedente do autoconsumo, obtendo-se, em média, uma unidade com 1 kg ou mais por dia, parte consumida pela família e o restante comercializado no mercado informal, diretamente aos consumidores, via relações de confiança. Embora a renda advinda destas pequenas quantidades de queijo fosse modesta, era de grande importância na administração do lar, pois com tais recursos, as mulheres compravam roupas para os filhos, material escolar e gêneros alimentícios não produzidos na propriedade, como café, açúcar, sal, farinha de trigo, dentre outros. Ressalta-se também que a rápida expansão da atividade leiteira ocorreu a partir da presença nas propriedades rurais desses pequenos rebanhos, que forneciam leite para consumo familiar e para a produção de queijo colonial o que permitiu que em menos de 20 anos o oeste catarinense se transformasse numa das principais bacias leiteiras do País.

Entretanto, o queijo colonial de leite cru está deixando de ser produzido pelas agricultoras. Se tomarmos a região oeste de Santa Catarina como exemplo, com cerca de 80 mil estabelecimentos rurais, dos quais 90% são de propriedade de agricultores familiares, em 1985 o queijo colonial era produzido em 37.361 destes estabelecimentos. Este número reduziu-se para apenas 3.389 em 2006, uma diminuição de 90,9% (IBGE). A razão principal desta drástica redução no número de produtoras de queijo é devido à imposição das normas sanitárias inadequadas à produção tradicional com leite cru. Outras razões são: o êxodo rural, especialmente de jovens – com a consequente interrupção da transmissão dos conhecimentos das mães para as filhas -, o aumento de escala de produção em outras atividades e a decorrente falta de tempo para a produção de queijo (DORIGON, 2008; DORIGON; RENK, 2011; DORIGON et al., 2015).  

É importante destacar também que são os produtores mais pobres que continuam a produzir o queijo colonial artesanal, devido a sua pequena escala de produção, às distâncias das linhas de leite e/ou às más condições das estradas, não interessando assim aos laticínios suas pequenas produções de matéria prima.  

Entretanto, ao mesmo tempo em que as agricultoras estão deixando de produzir queijo, as agroindústrias familiares rurais passam a ocupar esse mercado. Mas, para se formalizar, essas pequenas queijarias devem se submeter às normas higiênico-sanitárias que desconsideram as características artesanais do produto, gerando um processo de descaracterização do queijo colonial, pelo abandono das técnicas tradicionais de produção, que estão sendo paulatinamente abandonadas. Está se perdendo assim um dos maiores patrimônios culturais desses agricultores, ou seja, seu saber-fazer.

Uma das exigências para a formalização da produção de queijo é a pasteurização do leite. Assim, atualmente há também a produção de queijos coloniais em pequenas queijarias com leite pasteurizado, o que os aproxima dos queijos industriais.

Por ocasião de sua implantação, a exigência legal de pasteurização do leite destinado à produção de queijos artesanais foi pouco questionada. Porém, atualmente estão sendo feitos questionamentos a esse respeito, mesmo que ainda timidamente, havendo discussões em nível nacional em torno da defesa dos queijos de leite cru.

Estes questionamentos são formulados sobretudo pelos produtores ligados à ONGs e por alguns pesquisadores, especialmente os das ciências sociais e humanas. A percepção da importância de defender as técnicas tradicionais de produção do queijo colonial surge e se dissemina pela participação de produtores e pesquisadores no Slow Food e nos contatos que a Rede lhes permite: participação dos simpósios sobre produção dos queijos artesanais de leite cru; Terra Madre Brasil e Terra Madre/Salone del Gusto (Turim) e Cheese (Bra). Nestes eventos os produtores entram em contato com outros produtores de diferentes regiões do Brasil e do mundo, com técnicos, pesquisadores, chefs de cozinha, e passam a valorizar os atributos artesanais e os métodos tradicionais de produção dos queijos.

As técnicas de produção do queijo colonial

Nos sistemas tradicionais de produção de leite, não havia definição de raça de gado específica, optando-se pelas mais rústicas e compondo, geralmente, um rebanho misto. Nos últimos anos, com a rápida tecnificação da atividade leiteira, passou a haver o predomínio de raças especializadas como a Holandesa e a Jersey. A alimentação das vacas, nesses sistemas tradicionais, era composta basicamente de pasto, complementando com milho, mandioca e ramas de batata doce, o que conferia um sabor diferenciado ao queijo. Atualmente, nessa complementação ao pasto, prepondera o uso de ração balanceada. Os demais alimentos foram praticamente abandonados, devido principalmente a problemas relacionados à mão-de-obra.

As vacas são ordenhadas duas vezes ao dia – pela manhã e à noite. O leite da ordenha da noite é refrigerado e misturado ao da ordenha matinal para fazer o queijo. O primeiro passo para a produção do queijo é coar o leite em peneira apropriada, este sendo depositado em panelas para o aquecimento até 30ºC, quando então são acrescidos o sal e coalho.

Tradicionalmente as agricultoras utilizavam o coalho biológico, obtido do estômago de bovinos, que depois de bem limpo era salgado estirado em estacas e posto para secar ao sol. Após bem seco, o estômago era cortado em pequenas tiras e colocado de molho em água e sal. Esse líquido era então usado para coalhar o leite. Com o advento do coalho industrial, o uso do coalho artesanal foi abandonado, devido à praticidade do uso do primeiro. Cerca de 40 minutos após adicionado o coalho o leite já está coagulado, sendo então talhado para que o soro se separe da massa para posterior transferência para as fôrmas.

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Figura 2. Massa de leite coalhado sendo tralhado. Produtora de queijo artesanal do município de Xaxim, oeste de Santa Catarina. Fonte: Clovis Dorigon (2011)    

Para se colocar a massa nas fôrmas as agricultoras geralmente utilizam panos brancos, apropriados para este fim, que manterão a massa aglutinada durante a prensagem. Usa-se uma prensa manual, com uma fôrma redonda que permite a produção de apenas um queijo por vez, o queijo do dia. O diâmetro dessa fôrma pode ser regulado de acordo com as variações na produção diária de leite a ser transformado em queijo. Daí que o queijo colonial possui tamanho variável – de um a vários quilogramas- e formato redondo. O queijo é deixado na prensa escoando o soro até a manhã do dia seguinte, quando então é retirado para ser substituído pelo queijo do dia.

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Figura 3. Imagem de queijo colonial sendo prensado. Produtora de queijo colonial do município de Concórdia, oeste de Santa Catarina. Fonte: Clovis Dorigon (2006).

Depois de retirado da prensa o queijo é maturado entre cinco a 12 dias, período em que é então consumido e/ou comercializado. O que não é comercializado depois desse período é destinado à maturação adotando-se técnicas tradicionais de conservação pois, transcorrido esse período, o queijo começa a ficar com a casca dura, deixando de ser demandado pelos clientes, a não ser aquele usado para ralar.  

Há várias técnicas para se conservar o queijo colonial e impedir que “carunche”, ou seja, que sofra ataque de ácaros durante o processo longo de maturação. As mais utilizadas são imergir em vinho ou untar com banha, colorau e pimenta. Quanto à técnica de imersão no vinho, segundo relato de agricultores mais idosos, esta surgiu com o hábito de se mergulhar os queijos no bagaço da uva tinta por ocasião da produção do vinho. Ao longo do ano o queijo pode ser mergulhado no vinho, geralmente feito de uvas bordô (de cepas americanas), de coloração mais intensa, conferindo esta cor ao queijo. A técnica consiste em se mergulhar o queijo, já com a casca dura e durante dois ou três dias, em recipiente com vinho, virando-o diariamente para que seja impregnado pela bebida e absorva a coloração característica. Depois disso o mesmo é pendurado em redinhas de embalar frutas para que possa respirar, aí permanecendo até o final da maturação.

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Figura 4. Queijos em processo de maturação. Queijaria artesanal do município de Xaxim, oeste de Santa Catarina. Fonte: Clovis Dorigon (2011).

Não há um período exato para a maturação, pois vai depender da forma como será consumido. Se in natura, normalmente com acompanhamento de pão ou polenta e salame, prefere-se queijos mais frescos, de até três meses de maturação. Se mais duros são preferidos para ralar e para serem usados como ingredientes de pratos como macarrão, pizza, risoto, mondongo, sopas de agnolines, brôdos, lasanhas, tortéis, dentre outros.

Outra técnica de conservação consiste na utilização de banha, colorau e pimenta. O colorau e a pimenta são misturados à banha e são aplicadas manualmente no queijo, que passa a ter a cor avermelhada, característica do colorau, conferindo uma aparência especial, que chama a atenção dos consumidores. Depois da aplicação deste conservante, também é pendurado em redinhas e lá permanece durante todo o período de maturação.

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Figura 5. Queijos coloniais tradicionais (claros), ao vinho (escuro) e com banha e colorau (avermelhado) expostos no I Simpósio dos Queijos Artesanais do Brasil, realizado em Fortaleza (2011).
Fonte: Clovis Dorigon (2011)

Assim, observamos que o queijo colonial é mais um dentre os diversos queijos artesanais de leite cru de grande qualidade produzidos pelos agricultores brasileiros, mas ainda pouco conhecidos. Apenas nos últimos anos esses queijos de qualidade diferenciada passaram a ter o seu devido reconhecimento, movimento liderado pelos célebres Queijos de Minas.

Entretanto, no caso do queijo colonial, tal processo de valorização ocorre num período em que um expressivo número de estabelecimentos rurais está deixando de produzí-lo, com sérios riscos de perda de suas características tradicionais. Tais singularidades valorativas resultam da relação entre o saber fazer dos descendentes de imigrantes que colonizaram parte da região Sul como meio natural onde vivem e trabalham. Valorizar esse produto artesanal é também valorizar o território em que é produzido, a história de sua colonização e sua cultura. E, sobretudo, os agricultores detentores desses conhecimentos.

Notas:

1) Clóvis Dorigon é doutor, pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). E-mail: cdorigon@epagri.sc.gov.br.

2) À medida que a venda do leite foi se tornando uma renda importante para a família, essa atividade passa também para as mãos masculinas, tornando-se o componente principal da economia da maioria das unidades de base familiar. Isso provoca significativas mudanças no interior das propriedades, sobretudo no que diz respeito à organização do trabalho e à relação de gênero.

Referências

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