Documentario Quindim de Pessach

Reflexões a partir do Quindim de Pessach

Documentario Quindim de PessachQuindim de Pessach foi produzido a partir de prêmio recebido na edição de 2009 do Etnodoc, projeto conduzido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e pelo Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que buscou estimular a produção de documentários etnográficos sobre patrimônio cultural imaterial.
Pessach, ou “Páscoa Judaica”, marca a comemoração da libertação do povo de Israel da escravidão, no antigo Egito. O quindim, de origem portuguesa, hoje considerado bem brasileiro, foi introduzido na mesa de Pessach de uma das famílias entrevistadas no documentário por sua cozinheira, que percebeu que os ingredientes da receita não desrespeitam as prescrições alimentares que marcam o evento religioso.
Com delicadeza, o documentário mostra o encontro, por meio da culinária, da cultura judaica com a brasileira, apresentando a relação e a transmissão de conhecimentos entre matriarcas judias e cozinheiras brasileiras. O aprendizado, como mostrado, não se dá somente através das receitas, mas pela comunicação de tradições e costumes, festivos ou religiosos. O filme mostra as cozinheiras se apropriando dos costumes de seus patrões, ao mesmo tempo em que introduzem conhecimentos próprios a suas origens e trajetórias à cozinha judaica, participando também da transmissão de antigos saberes às novas gerações. Identifiquei-me incrivelmente com estas cozinheiras, pois minha história de vida é marcada por uma apropriação cultural a partir da culinária.

 O estudo da Antropologia da Alimentação tem feito com que me dê conta das razões de uma busca que começou em minha infância: receitas. Por quê? Busca por uma identidade é a resposta a que estou chegando agora. Meus avós eram todos brasileiros e, considerando a simplicidade e pobreza dessas famílias, não deixaram registros históricos, documentos, memórias, receitas. Tive pouco contato com minhas avós e minha mãe não tinha muito interesse em culinária. Aos 16 anos, quando comecei a namorar meu (futuro) marido, conheci uma realidade bastante diferente: uma mãe grega, católica ortodoxa, extremamente apegada à família e às tradições de seu povo, que, no final dos anos 1950, aos 17 anos, chegou ao Brasil com os pais e irmãos. Como tantos outros imigrantes, trouxeram esperanças, costumes, memórias e receitas, de pratos cotidianos ou festivos, tradicionais.

Fui então, aos poucos, me deslumbrando com a cultura grega e, sem refletir a respeito, resgatando e me apropriando das receitas, saberes e sabores, como se fizessem parte de minha própria história. Acredito já ter registrado de forma escrita mais informações culinárias do que qualquer descendente desses imigrantes. Talvez eu ainda continue sem saber quem sou, mas, nesse processo, passei a me sentir parte de algo.

Cozinheira Quindim de PessachAssim como eu, as cozinheiras que falam em Quindim de Pessach demonstram grande orgulho e satisfação pela apropriação que fizeram da cultura estrangeira que lhes foi apresentada, e isso parece ter mais relevância em seus discursos do que o fato de somarem à culinária judaica conhecimentos de sua própria cultura.

Em artigo que analisa ritos comensais durante o Ramadán – que marca o nono mês do calendário islâmico, durante o qual os muçulmanos praticam jejum ritual –, em Porto Alegre, e tendo observado um jantar na casa de uma brasileira convertida ao islamismo, Pereira (2002) relata detalhadamente a quebra de jejum de famílias islâmicas residentes no Brasil. A autora explica que os pratos oferecidos são basicamente os de origem árabe, mas diversos pratos brasileiros passaram a fazer parte do evento. No entanto, fica clara a importância da anfitriã apresentar, por meio da reprodução de receitas árabes, domínio da cultura que lhe foi transmitida. Para a autora, na cozinha são simbolicamente mantidas as diferenças, na medida em que coexistem pratos brasileiros e árabes, mas também é mantida a igualdade, pois todos os rituais são respeitados. Suponho que aqui ocorra o mesmo sentimento de realização e orgulho pela apropriação de conhecimento da culinária árabe pela anfitriã brasileira, mais do que pela aceitação, pelo grupo, dos pratos regionais que também oferece. Assim sou levada a pensar também por minha própria experiência, já que, eventualmente, sou responsável por preparar pratos gregos em eventos da família.

Cena do Quindim de Pessach 2Garine (1987) afirma que o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence e, assim como Silva (2002), ressalta que as razões simbólicas da escolha dos alimentos se devem à ligação emocional com os hábitos alimentares da infância, geralmente estabelecidos pela cultura, argumentando que manter o estilo tradicional de alimentação seria uma forma de manter o grupo unido e defender-se de agressões externas. Isso fica ainda mais claro no caso de emigração. Por outro lado, se o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence, a emigração coloca ao grupo a necessidade de adaptar-se a uma nova sociedade. E as influências do novo lugar muitas vezes começam pela alimentação. Talvez, nesse sentido, meu interesse pela apropriação da culinária grega, assim como a dedicação das cozinheiras brasileiras inseridas a partir de relação de trabalho junto às famílias judias mostradas no documentário ao aprendizado da nova cultura tenha ocorrido, em alguma medida, pelo anseio de fazer parte daquele novo grupo.

As influências da indústria e da facilidade de comunicação e comércio também são discutidas por Garine (1987). Além das alterações de ingredientes obrigatórias em casos de emigração, pois muitos produtos não são, ou pelo menos não eram em décadas passadas, encontrados no novo lugar, a industrialização e as facilidades de acesso a novos produtos permitem a absorção de “subculturas” por qualquer indivíduo.

moussakaO Mussaka, talvez o mais tradicional e famoso prato grego, é originalmente feito à base de carne de cordeiro moída. No entanto, a família grega aqui mencionada, instalada em São Paulo no final dos anos 1950, dada a dificuldade de encontrar o ingrediente básico para seu prato mais comum, se viu obrigada a substituir o cordeiro por carne bovina. Posteriormente, ao casar-se com um mineiro, uma das filhas abriu mão de temperos tradicionalmente usados no preparo da carne para o Mussaka, como cravo e canela, por não agradarem ao paladar do marido. Amon e Menasche (2008) descrevem contextos que levaram grupos de imigrantes – no caso, judeus sefaradim – a alterar receitas após imigração, tais como: acesso a produtos industrializados desconhecidos ou menos acessíveis em seu país de origem; dificuldade de aceitação local de algum ingrediente ou a adoção de novas receitas pela convivência com pessoas do novo local. No caso da família na qual me inseri, a avó grega se encantou com “Miojo Lamen” (lançado no Brasil em 1965) e preparava a novidade com amor para os netos, todos nascidos no Brasil.

kourabiedesDos pratos tradicionais preparados pelos membros dessa família grega, não existiam receitas escritas. Tudo que a avó ensinou aos filhos e a alguns netos foi via oral e as receitas se perpetuaram pela repetição. O que aprendi foi sendo registrado por escrito após observação e acompanhamento do preparo de cada prato. Do mesmo modo, no documentário Quindim de Pessach, as cozinheiras mencionam ter geralmente aprendido as receitas com as matriarcas da família, por meio de observação, acompanhamento e repetição. Amon e Menasche (2008), que analisam receitas escritas pela avó de uma das autoras, explicam que a imprecisão nas quantidades e nos procedimentos escritos parece considerar que o usuário futuro das receitas irá reproduzi-las com base em suas memórias: há a confiança de que o paladar é coletivo e que a comida tem uma dimensão comunicativa.

O processo de transmitir receitas de uma geração à outra apenas de forma oral e com base em observação e repetição, como no exemplo da família grega à qual pertenço e das famílias judias apresentadas em Quindim de Pessach, ilustra a dimensão comunicativa da comida. A precisão da receita é secundária e, segundo Amon e Menasche (2008, p.20), “o contar histórias é uma das formas pelas quais as comunidades compre­endem seu passado, presente e futuro”. E isso a partir, também, da comida.


Referências

AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 13-21, 2008.

GARINE, Igor de. Alimentação, culturas e sociedades. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, p. 4-7, 1987.

QUINDIM DE PESSACH. Direção de Olindo Estevam. Direção de produção de Anita Gomes. Produção de Jaya Assessoria em Comunicação e Arte e Paiol Digital. São Paulo, SP. 2009.

PEREIRA, Lenora Silveira. A marca do islã na alimentação: ritos comensais durante o Ramadán em Porto Alegre. Revista Travessia, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 11-15, 2002. 

SILVA, Sidney Antonio da. “Salud! sirvase compadre!”: a comida e a bebida nos rituais bolivianos em São Paulo. Revista Travessia, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 5-10, 2002.


* Sandra Fonseca é engenheira agrônoma (formada pela UFRGS) e membro do Convívio Slow Food Porto Alegre.

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