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Sociedade civil exige cancelamento de decisão que libera cultivo e comércio de trigo transgênico no Brasil

Texto publicado originalmente por Grupo de Trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia

Documento apontando perigos do trigo HB4 à soberania alimentar, à saúde, à biodiversidade e à economia do país foi protocolado junto ao governo federal e a órgãos da Justiça. Organizações reivindicam audiência com ministérios e denunciam que aprovação do trigo transgênico foi feita sem análises de riscos

Foi enviado ao Presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), o Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Rui Costa, um ofício reivindicando o cancelamento da liberação do cultivo de trigo transgênico HB4 e da importação de farinha de trigo transgênico HB4. Assinado por um coletivo de organizações, redes e movimentos sociais, o documento, protocolado nesta segunda-feira (20), reúne informações sobre ilegalidades e violações no processo de aprovação do produto geneticamente modificado, além de perigos à saúde, à biodiversidade, à economia e à soberania alimentar, já que o trigo faz parte da base da alimentação da população brasileira. O texto também foi entregue a outros 10 Ministérios que compõem o CNBS, ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.

A aprovação do plantio do trigo transgênico no Brasil ocorreu, no último 1º de março, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instância responsável pela liberação de organismos geneticamente modificados. As organizações denunciam que a decisão foi tomada sem que houvesse análises técnicas e debates públicos suficientes. Diante da situação, as entidades requerem audiência com as ministras e os ministros que compõem o Conselho e cobram a suspenção dos efeitos da decisão da CTNBio. Reforçam ainda que, muito além de uma questão técnica, a aprovação de biotecnologias no país deve necessariamente incluir a participação de diferentes setores da sociedade.    

Ilustração: Ribs/GT Biodiversidade da ANA.

 Ilegalidades e perigos à biodiversidade

As organizações que assinam o ofício denunciam que as liberações da importação da farinha e do cultivo do trigo transgênico HB4 violam a Lei de Biossegurança nº 11.105/2005 e o Protocolo de Cartagena, um dos instrumentos da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). O Brasil aderiu ao tratado internacional, mas a Argentina não. Portanto, o processo para a aprovação do produto transgênico no país vizinho deveria se adequar às exigências da legislação brasileira, que são mais rígidas. A decisão tomada pela CTNBio, ainda composta por membros indicados por ministérios do governo de Jair Bolsonaro, surpreendeu, em especial, por se basear em um processo anterior, de 2021, aberto exclusivamente, como afirmava a própria Comissão, para a importação da farinha de trigo transgênica da Argentina, e não para o cultivo do trigo HB4 em território brasileiro.

“A Lei de Biossegurança brasileira estabelece, por exemplo, procedimentos e estudos diferentes para as distintas finalidades de uso, ou seja, as avaliações sobre o consumo ou plantio do trigo transgênicos deveriam ser feitas de forma separada. Trata-se de uma ilegalidade que já faz com que a decisão possa ser anulada”, explica Larissa Packer, da organização internacional Grain.

A única audiência sobre o trigo transgênico realizada até hoje pela CTNBio trouxe informações consideradas inconsistentes pelas entidades. O HB4, por exemplo, é modificado para tolerar o glufosinato de amônio, que é altamente tóxico e poderá chegar à mesa da população na forma de pães, massas, pizzas, bolos, salgados, biscoitos, entre outros alimentos de consumo massivo². Ainda assim, não foram ouvidos especialistas em defesa dos direitos de consumidores e consumidoras. Além disso, o representante da empresa argentina demandante da liberação do produto no Brasil chegou a desvincular o cultivo do trigo transgênico do referido agrotóxico. Curiosamente, a própria Bioceres recomendava em seu site a quantidade mínima do herbicida para seu plantio: dois litros por hectare.

Cultivo do trigo HB4 aumentará uso de agrotóxicos nas lavouras. (Foto: FreePik)

Outra preocupação se refere à ausência de estudos nos diferentes biomas do país, o que impede a avaliação sobre o desempenho agronômico do trigo geneticamente modificado, assim como a previsão de riscos ao meio ambiente. Não se comprovou, por exemplo, a efetividade de seu desempenho em áreas de seca, um dos principais argumentos do lobby favorável ao trigo transgênico. “Não houve pesquisas de campo e análises sobre possíveis efeitos adversos à biodiversidade. A eterna promessa envolvendo mais produtividade com menos oferta de água nunca se cumpriu com a soja ou o milho transgênico. Vai se cumprir com o trigo?”, questiona o agrônomo Leonardo Melgarejo, que integra o Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)³.

Fome e comida mais cara

As organizações também contestam à ideia de que o trigo transgênico seria necessário no combate à fome, problema que atinge pelo menos 33 milhões de pessoas no Brasil, como aponta pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Defendem que a introdução do produto no Brasil poderia custar alto economicamente, já que estaria atrelada ao pagamento de royalties às empresas titulares da biotecnologia transgênica. Apesar de ser uma empresa argentina, a Bioceres possui capital aberto na Bolsa de Valores de Nova Iorque e alianças com transnacionais do ramo da alimentação, como Monsanto e Syngenta. Nesse contexto, o trigo HB4 poderia tornar o Brasil mais vulnerável às oscilações do mercado internacional para estruturar sua política alimentar. O impacto da aprovação de trigo transgênico, portanto, recairia no valor da comida. Cabe destacar que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil fechou 2022 com mais que o dobro da inflação sobre os alimentos e bebidas (11.64%), face à inflação geral (5,79%). 

Campanha contra trigo transgênico exige: “No Nosso Pão Não!” (Foto: FreePik)

“Também não se comprovou a real possibilidade de segregar o trigo transgênico em suas etapas de cultivo, transporte, armazenamento e processamento. Assim, a biotecnologia transgênica poderia rapidamente se tornar totalitária. Como os plantios convencionais ou agroecológicos ficariam constantemente suscetíveis à contaminação, os direitos de agricultoras e agricultores seriam violados”, aponta Leonardo. Nessa situação, o poder de escolha sobre qual tipo de trigo cultivar ou quais insumos utilizar na produção estaria inviabilizado, já que a transgenia é dependente de agrotóxicos. Ainda que fosse possível separar o HB4 das outras culturas de trigo, as organizações ressaltam que tal ação demandaria ainda mais custos à agricultura convencional, orgânica ou agroecológica, o que, mais uma vez, poderia recair no preço dos alimentos no país.  

[1] Manifesto publicado pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida reúne adesões de instituições e movimentos sociais contra o trigo transgênico.

[2] Pessoas físicas que queiram repudiar o trigo transgênico podem assinar petição no site do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

[3] Conteúdo: Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Texto: Gilka Resende. Ilustração: Ribs. Fotos: Freepik.

Sociedade civil exige cancelamento de decisão que libera cultivo e comércio de trigo transgênico no Brasil

Date março 21, 2023
Documento apontando perigos do trigo HB4 à soberania alimentar, à saúde, à biodiversidade e à economia do país foi protocolado junto ao governo federal e a órgãos da Justiça. Organizações reivindicam audiência com ministérios e denunciam que aprovação do trigo transgênico foi feita sem análises de riscos

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A volta do CONSEA

Em 28 de fevereiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva completa o segundo mês de seu terceiro mandato, ocorre a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que havia sido extinto no primeiro dia de governo de seu antecessor. Para contextualizar a volta do CONSEA, vale ter presente, ainda que muito sinteticamente, sua trajetória recente. A isso se propõe este pequeno texto.

Em todo o país, o Banquetaço comemora o retorno do CONSEA e da política de combate à fome: participe na sua cidade!

Em 2014, após uma década em que o combate à fome fora colocado como eixo estratégico da agenda das políticas públicas do país, o Brasil deixou de constar do Mapa Mundial da Fome. Segundo Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO (2015), durante aquele período o número de brasileiros considerados em situação de subalimentação reduzira-se em 82%. Tal conquista decorreu “da decisão política de promover o crescimento econômico com distribuição de renda e o desenvolvimento de diversas políticas públicas com grande impacto nas famílias em situação de vulnerabilidade social” (FAO, 2016:1), cabendo destaque à agenda de Segurança Alimentar e Nutricional, em que se inscrevera, em 2003, a recriação do CONSEA.

O CONSEA é órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, de caráter consultivo, formado por um terço de conselheiros/as de governo e dois terços da sociedade civil, aí representados/as agricultores familiares, mulheres agricultoras, movimento agroecológico, agricultura urbana, indígenas, mulheres indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais (povos de matriz africana, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, entre outros), movimento urbano, pesquisadores/as, pessoas com necessidades alimentares especiais, centrais sindicais, grupos religiosos e associações patronais. Nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional –realizadas em 1994, 2004, 2007, 2009, 2011 e 2015– reúnem-se milhares de participantes, deliberando sobre os princípios e ações do CONSEA.

Como parte desse processo, que tem como marcas a participação social e a intersetorialidade, em 2006 foi promulgada a Lei nº 11.346, Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que estabeleceu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (SISAN), composto por: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional –que reúne os ministérios cuja atuação tem impacto na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional–; órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. Ainda compondo o marco institucional de SAN no Brasil, temos que, em 2010, foi criada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e incluído na Constituição Federal o Direito Humano à Alimentação Adequada (CONSEA, 2015).

Foi, assim, estabelecido em lei que “A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (BRASIL, 2006).

Tal conceito foi sempre orientador dos posicionamentos do CONSEA que, desse modo, pautou suas proposições no sentido de: democratização do acesso à terra e garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais, fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica, restrição ao uso de agrotóxicos e rejeição aos cultivos transgênicos, proteção da agrobiodiversidade e reconhecimento dos direitos decorrentes dos conhecimentos tradicionais associados, denúncia das consequências do aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados, reconhecimento de saberes e práticas da alimentação como patrimônio cultural. É nesse quadro que se colocam programas que foram propostos pelo CONSEA para implementação pelo governo federal, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que assegurou a compra institucional de alimentos da agricultura familiar, ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que estabeleceu que 30% de todo o orçamento da alimentação escolar seja destinado à aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar.

Cabe ainda menção, nesse processo, ao avanço representado pela segunda edição do Guia Alimentar da População Brasileira (Ministério da Saúde, 2014), que, tomando por pressupostos os direitos à saúde e à alimentação adequada e saudável, associou a alimentos minimamente processados o atributo da saudabilidade, estabelecendo relação entre obesidade, sobrepeso e doenças crônicas, que crescentemente têm atingido a população brasileira, ao consumo de alimentos processados.

É nesse quadro que se pode entender o lema escolhido para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015: “Comida de verdade no campo e na cidade”. O manifesto aprovado pela 5ª CNSAN afirma que:

“A comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta, contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana, povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, demais povos e comunidades tradicionais e camponeses, desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos. Comida de verdade começa com o aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas. É produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais e suas especificidades regionais. É livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes. Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado. Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Precisa ser acessível, física e financeiramente, aproximando a produção do consumo. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia. Promove hábitos alimentares saudáveis no campo, na floresta e na cidade. Comer é um ato político. Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. Não mata nem por veneno nem por conflito. É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e a paz entre os povos.”

Após um golpe de estado que, em 2016, estancou os avanços sociais que vinham sendo conquistados pela sociedade brasileira; uma pandemia e um governo genocida (2019-2022), chegamos a uma situação em que mais da metade da população brasileira convive com a insegurança alimentar, sendo que 33,1 milhões passam fome (Rede Penssan, 2022). Esse é o tamanho do desafio que se apresenta, mas também da energia e motivação que mantiveram ativos, por todo o país, durante o período em que o CONSEA esteve extinto, conselhos estaduais e municipais de Segurança Alimentar e Nutricional, movimentos sociais, militantes, estudiosos/as… gente que agora, mais uma vez, se agrega na luta pela comida de verdade, para toda a população brasileira: o CONSEA voltou!

Referências

BRASIL. Lei nº 11.346, 2006.

CONSEA. Comida de verdade no campo e na cidade: 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – relatório final, Brasília, 2015.

FAO. O estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, Brasília, 2015.

FAO. Superação da fome e da pobreza rural: experiências brasileiras, Brasília, 2016.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia Alimentar da População Brasileira, 2014.

REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan, 2022.

* Este texto foi elaborado a partir de extratos do trabalho escrito em parceria com Carmen Janaina Machado, “Elementos para uma agenda de pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional à luz da Antropologia”, publicado em 2019, no México, como capítulo do livro Inseguridad alimentaria y políticas de alivio a la pobreza. Una visión multidisciplinaria , organizado por Blanca Rubio e Ayari Pasquier.

* Renata Menasche é Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e conselheira do CONSEA.

A volta do CONSEA

Em 28 de fevereiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva completa o segundo mês de seu terceiro mandato, ocorre a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que havia sido extinto no primeiro dia…

Cozinha afetiva de verdade

Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.

Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo. 

A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum. 

Aline e os alunos da faculdade de gastronomia durante a Disco Xepa. Foto: Arquivo pessoal.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“. 

Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.

Cozinha afetiva de verdade

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta,…

Projeto Sociobiodiversidade Amazônica: Arca do Gosto, Ecogastronomia e Colheita do guaraná

Entre os dias 12 a 26 de novembro de 2022, a equipe do Projeto Sociobiodiversidade Amazônica (PSA) esteve na Terra Indígena Andirá Marau e na Brasileia, comunidade vizinha a TI, para a sequência de atividades deste projeto. Tivemos a oportunidade de acompanhar a colheita do guaraná (waraná na língua Sateré) junto com os/as agricultores/as da Associação dos Agricultores Familiares do Alto Urupadi (AAFAU). Também demos um retorno para as comunidades sobre o relatório do campo 1, fomentamos a criação do Círculo de Mulheres, promovemos uma oficina de Educomunicação (especialidade do nosso consultor Bruno Franques), seguimos o desenvolvimento do Protocolo de Sistemas Agrícolas e conversamos sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Bastante coisa acontecendo em campo!

Dinâmica “Trama de relações”, na abertura das atividades na Ilha Michiles. Foto: Bruno Franques
Reflexão sobre as atividades propostas. Zhamis, Bruno, Josibias (Tuxaua) e Sigliane. Comunidade da Ilha Michiles. Foto: Agnaldo Michiles
Roda de conversa sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Comunidade da Brasiléia. Foto: Paulo Messias

A Arca do Gosto é um programa do Slow Food que busca reconhecer, valorizar e catalogar alimentos ameaçados de extinção, seja essa biológica e/ou cultural, ou seja, espécies e modos de fazer em risco de desaparecer. No momento, há mais de 5.000 produtos catalogados em todo mundo, mais de 200 produtos no Brasil e, na Amazônia, aproximadamente 50. A catalogação ocorre por meio de indicações e preenchimento de fichas com informações detalhadas sobre os produtos, o que este projeto pretende fazer para incluir alguns alimentos das comunidades parceiras no programa. Por meio dos métodos aplicados, chegamos a seis indicações e ressaltamos duas que possuem algo em comum: o consumo de insetos nas comunidades! A formiga “sahay” e o bicho de gongo foram indicações das comunidades Ilha Michiles e Brasileia, respectivamente. 

Bicho de Gongo, um dos alimentos indicados para a Arca do Gosto na comunidade da Brasiléia. Foto: Bruno Franques

Um ponto interessante dessas atividades de campo tem sido o preparo das refeições. Nosso colega e consultor Zhamis Benício, da Comunidade Slow Food Manaus pelo legado alimentar da Amazônia, tem contribuído com o método de trabalho e diversas receitas ao longo das atividades. Diversos comunitários e comunitárias têm sido convidados a participar e compartilhar dessas aventuras ecogastronômicas. A participação masculina tem sido incentivada, em especial nos momentos de reunião das mulheres, denominado Círculo de Mulheres.

Agradecimentos antes da refeição, com mesa farta e alimentos tradicionais. Comunidade da Brasiléia. Foto: Bruno Franques
Degustações da oficina de Ecogastronomia, em Peniel do Areal. Foto: Bruno Franques
Alimentação tradicional após uma oficina de Ecogastronomia, na comunidade da Brasiléia. Foto: Bruno Franques
Pescadores após uma madrugada de trabalho, na Ilha Michiles. Foto: Bruno Franques

A partir da aplicação de algumas metodologias da Caixa de Ferramentas de Gênero da Agência de Cooperação Técnica da Alemanha no Brasil (GIZ), a equipe de campo do PSA do Amazonas propôs e estimulou as mulheres a criarem um espaço seguro de interação, apoio, acolhimento, articulação política e desenvolvimento de projetos. O Círculo de Mulheres foi rapidamente apropriado por elas, que passaram a desenvolvê-lo de acordo com suas próprias perspectivas, de maneira autônoma e potente. Os resultados já começam a aparecer e a participação feminina nas atividades tem ganhado força com interações cada vez mais intensas.

Ferramenta 1 da GIZ, na comunidade Renascer, em Peniel do Areal. Foto: Bruno Franques

As Oficinas de Educomunicação foram promovidas por Bruno Franques, que incorporou alguns de seus métodos de trabalho na proposta do PSA. Com exercícios de elaboração narrativa a partir das diversas camadas da percepção de identidade de cada um, em interação com o ambiente e com os demais participantes, foram abordados importantes aspectos dos elementos constituintes das mensagens midiatizadas. Tais reflexões contribuem de um lado para que a comunidade possa ser mais crítica ao modelo proposto pela indústria cultural e de outro, que estejam aptos a criarem narrativas estratégicas e envolventes que valorizem seus modos de vida e divulguem seus produtos.

Outro ponto importante dessa ida a campo foi a participação do Bruno e Zhamis na colheita do guaraná com a AAFAU.  Além de prestarmos um apoio direto durante este período crítico para a comunidade, nossa equipe pôde tirar boas fotos, vivenciar este momento de colheita tão importante, compreender melhor sobre o beneficiamento do guaraná e trazer diversas impressões sobre o processo, que colaboraram para uma melhor compreensão das práticas desses sistemas agrícolas.

Colheita do guaraná na comunidade Brasiléia. Foto: Bruno Franques
Colheita do guaraná na comunidade Brasiléia. Foto: Zhamis Benício
Colheita do guaraná na comunidade Brasiléia. Foto: Zhamis Benício
Seleção de grãos pós-torragem para o preparo do bastão de guaraná. Seu Simão, da comunidade da Brasiléia. Foto: Bruno Franques
Pilhagem e modelagem do bastão do guaraná, na comunidade da Brasiléia. Foto: Bruno Franques

Esta interação tem gerado boas expectativas e acreditamos que poderemos “colher bons frutos desse plantio”!

A Associação Slow Food do Brasil estabeleceu uma parceria para o desenvolvimento do projeto Sociobiodiversidade Amazônica com o projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, desenvolvido no âmbito da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, com apoio do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha. Este projeto acontece nos estados do Amazonas, Acre e Pará ao longo de 2022 e 2023.

Projeto Sociobiodiversidade Amazônica: Arca do Gosto, Ecogastronomia e Colheita do guaraná

Entre os dias 12 a 26 de novembro de 2022, a equipe do Projeto Sociobiodiversidade Amazônica (PSA) esteve na Terra Indígena Andirá Marau e na Brasileia, comunidade vizinha a TI, para a sequência de atividades deste projeto. Tivemos a oportunidade de acompanhar…

Aliança defende que povo Yanomami tenha acesso à comida de verdade

Foto de destaque: Preparando a pupunha para festa, aldeia Demini, Terra Indígena Yanomami, Amazonas (Kristian Bengtson, 2003). Texto originalmente publicado no site da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

Aliança elaborou uma nota de recomendações em defesa do direito humano à alimentação adequada e saudável e, sobretudo, à vida do Povo Yanomami.  A carta repudia a omissão do Estado, durante os últimos anos, perante a destruição do território e do modo de vida tradicional do Povo Yanomami, além de defender que ações emergenciais de combate à desnutrição e fome sejam pautadas na saúde, na segurança alimentar e nutricional, no respeito à cultura alimentar deste povo.

As informações recentes apontam que ocorreram mais de 500 mortes prematuras e evitáveis de crianças, principalmente por desnutrição grave, malária, entre outras calamidades – muito disso devido às atividades ilegais de garimpo nos territórios indígenas.

Leia nota completa abaixo:

COMIDA DE VERDADE SEM CONFLITO DE INTERESSES PARA OS YANOMAMI 

Nos últimos dias ganharam visibilidade notícias alarmantes que denunciam o genocídio do povo Yanomami. Mais de 500 mortes evitáveis de crianças Yanomamis nos últimos quatro anos. Imagens de crianças, mulheres e homens com desnutrição grave, malária e outras doenças. Contaminação das águas e dos peixes por mercúrio, destruição do território e da reprodução de seu modo de vida tradicional e, consequentemente, da obtenção de alimentos e da manutenção das atividades socioeconômicas, por conta das atividades ilegais de garimpo em terras indígenas demarcadas. Este cenário é claramente o resultado da omissão do Estado na proteção e defesa dos direitos à vida, terra e território, à saúde e à alimentação deste Povo, que tem como consequência a alta taxa de mortalidade, em especial a infantil, os altos índices de doenças relacionadas à má-nutrição, verminoses e um quadro dramático de insegurança alimentar e fome.

Assim como ocorrido ao longo da pandemia de Covid-19, indústrias de alimentos estão se apresentando para colaborar com o enfrentamento do problema, neste caso, por meio de doação de alimentos ultraprocessados que não são condizentes com a cultura alimentar deste Povo e que causam problemas de saúde e acarretam a morte de 57 mil brasileiros por ano,3. Apesar da aparente boa ação, estas iniciativas do setor privado são, na verdade, uma estratégia de publicidade e marketing (“social washing”), que vinculam a ação da empresa e os produtos doados a ideais de engajamento e responsabilidade social. Essa estratégia não colabora para a solução estrutural dos problemas, mas promove a marca e os produtos doados e estimula o seu consumo. É justamente em situações de crise sanitária e calamidade pública que grandes indústrias se beneficiam de estratégias de autopromoção disfarçadas de filantropia que podem custar muito à saúde, aos modos de vida e autonomia dos diferentes grupos da nossa sociedade, violando direitos humanos e os direitos da natureza. Acabar com a fome é urgente, assim como resgatar a dignidade de um Povo e o seu direito de retomar seus modos de vida.

Assim, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável alerta para a necessidade de que as ações emergenciais de combate à desnutrição e fome sejam pautadas na saúde, na segurança alimentar e nutricional, no respeito à cultura alimentar, aos modos de vida e saberes do Povo Yanomami e, também, na sua proteção contra estratégias de ação política corporativa que promovam marcas e produtos não saudáveis. Acabar com a fome e a desnutrição do Povo Yanomami é uma emergência humanitária e sanitária que deve ser superada com ações coerentes com a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.

 Portanto, defendemos as seguintes medidas:

  • Estabelecer normas para que o recebimento e a destinação de doações de alimentos sejam alinhados à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), à Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), ao Guia Alimentar para a População Brasileira e ao Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos e, também, às práticas alimentares do povo Yanomami, respeitando seus valores e sua cultura alimentar, e considerando protocolos de prevenção e mitigação de conflito de interesses nos processos de doação de alimentos e de tratamento dos casos de desnutrição .
  • Privilegiar a compra de gêneros alimentícios da sociobiodiversidade e de base orgânica e agroecológica, priorizando produtores da agricultura familiar local pela sua capacidade de produzir alimentos condizentes com a vocação agrícola e a cultura alimentar local;
  • Garantir a implementação de medidas que promovam, protejam e incentivem o aleitamento materno;
  • Garantir o acesso do povo Yanomami à água própria para consumo e à segurança hídrica.

Ao envidar esforços para reverter a desassistência à saúde e à segurança alimentar e nutricional, o Governo Federal não pode permitir que os Yanomami sejam ainda mais expostos a risco nutricional e de saúde com o oferecimento de produtos nocivos à saúde.  O Direito Humano à Alimentação Adequada compreende erradicar a fome de todos e todas com acesso à alimentação saudável. Essas duas dimensões expressam um compromisso com a justiça social e cidadania. É desta forma que começaremos a pagar nossa dívida com o povo Yanomami.

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A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável é uma coalizão criada em 2016 que reúne organizações da sociedade civil, associações, coletivos, movimentos sociais, entidades profissionais e pessoas físicas que defendem o interesse público para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), previsto na Constituição Federal.

Para saber mais sobre a Aliança: https://alimentacaosaudavel.org.br/

Aliança defende que povo Yanomami tenha acesso à comida de verdade

Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável elaborou uma nota de recomendações em defesa do direito humano à alimentação adequada e saudável e, sobretudo, à vida do Povo Yanomami.

Projeto Slow Food Indica fortalece a agricultura familiar baiana por meio da comunicação

Estratégias de marketing focadas na valorização e divulgação da agricultura familiar baiana garantem visibilidade às organizações produtivas do estado.

por Alexandra Duarte e Nane Sampaio

Slow Food Indica presente nos estandes de venda durante a edição de 2022 da FEBABES. Credito: Mirela Boullosa.

Os alimentos bons, limpos e justos possuem histórias que precisam ser contadas. Há estratégias de comunicação e de narrativa que precisam estar na base de projetos e políticas voltadas para a alimentação. Contar as histórias reais por trás dos alimentos das agroindústrias, transparecendo cada etapa do processo produtivo, desde a origem, é uma maneira de cultivar experiências de consumo responsável, gerando conexão junto ao público. Com foco em regenerar e desenvolver as relações de mercado, e fomentar práticas e saberes tradicionais das famílias agricultoras e guardiãs da biodiversidade da Bahia, um circuito de estabelecimentos comerciais, inicialmente mapeados na capital, está utilizando materiais estratégicos de comunicação do projeto “Slow Food Indica”.

Karla Uckonn conta que o projeto conseguiu sensibilizar as pessoas que estão envolvidas diretamente na venda, para dar uma informação mais completa aos consumidores. “Isso tem sido muito potente, mesmo na equipe interna, no sentido de provocar a discussão acerca da complexidade que é o rastreio da origem desses alimentos. Ao mesmo tempo, oferece ferramentas de comunicação para que a gente consiga informar e formar o consumidor sobre como consumir melhor.”, explica Karla, coordenadora do Centro Público de Economia Solidária de Salvador (CESOL), uma das lojas parceiras do projeto.

Assim, a iniciativa Slow Food Indica oferece um suporte às ações de comercialização para fortalecer a divulgação nos pontos de venda visando despertar o interesse dos consumidores e destacar nas prateleiras alimentos com identidade, produzidos por nove cooperativas da agricultura familiar, que adotam boas práticas de produção, processamento e distribuição que, de alguma forma, convergem com as diretrizes do bom, limpo e justo, promovidas pelo  movimento Slow Food. 

Na 14ª edição do Terra Madre Salone del Gusto, que aconteceu em Torino (Itália) em setembro de 2022, o jornalista americano Micheal Moss alertou os ativistas presentes de que movimentos sociais como o Slow Food devem lutar para ocupar espaços midiáticos como especialistas no tema da alimentação. Em sua palestra “A Importância da Mídia: Como contar sua própria história” ele destacou que é urgente criar narrativas, imagens impactantes e contar histórias que sensibilizem o público consumidor e que sejam atrativas por si, deixando de aparecerem apenas como um contraponto ao agronegócio ou à indústria da alimentação. 

Nesse sentido, o Slow Food Indica fornece um caminho promissor ao atuar de forma ampla na comunicação acerca desses alimentos e produtos da agricultura familiar baiana. Muito mais do que estratégias de mercado para convencer, visa sobretudo promover um consumo responsável quando conta as histórias desses alimentos que fazem parte da cultura alimentar da Bahia. 

Karla aponta dois desafios na comercialização dos produtos e identifica a atuação do movimento Slow Food como fundamental na formação de um consumidor mais consciente “Vejo um duplo desafio: o da relação dos produtores com o mercado. A gente enquanto centro público atua muito no fortalecimento do empreendimento, de forma saudável, a partir das regras de mercado. Então, o Slow Food vem somar com esse segundo desafio que é o consumidor entender os diversos aspectos que estão envolvidos no processo produtivo mesmo. Entender quais são as fortalezas, os territórios da Bahia, e como é a produção. Aquilo que consumimos impacta na gestão de um território. Enfim, o que faz bem para mim, que é o que faz bem para o território, é o que faz bem para a natureza, é o que estabelece práticas solidárias e sustentáveis nas relações de trabalho e produção.”

O projeto, pactuado junto à Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), foi lançado durante a 13ª edição da Feira Baiana da Agricultura Familiar e Economia Solidária, FEBAFES, considerada uma das maiores feiras do país. Um espaço estratégico, que acolheu em sua programação diversas atividades que geraram visibilidade, entre elas uma mesa aberta para lançamento oficial do Slow Food Indica, transmitida ao vivo pelas redes sociais, que contou com a participação de representantes das organizações produtivas familiares, parceiros institucionais e do CESOL. 

Doces da COOPERCUC, uma das cooperativas que participa do Projeto Slow Food Indica na Bahia. Crédito: Mirela Boullosa

Para Denise Cardoso, cooperada da Coopercuc – Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá: “O lançamento foi importante principalmente por acontecer durante a FEBAFES que é o espaço de construção e encontro da agricultura familiar da Bahia. Trazer essa conversa foi importante no sentido da gente conhecer um pouco mais o projeto. A gente fez parte de todo o processo de construção, mas compreender como funciona foi bem mais interessante para a cooperativa e, também, enxergar as outras cooperativas que estão dentro do projeto.” A Coopercuc existe desde 2004 com o objetivo de qualificar e comercializar a produção dos produtos dos cooperativados. Atualmente, é composta por 450 famílias de 18 municípios do sertão baiano. É parceira do Slow Food desde sua fundação no trabalho de promoção e valorização dos alimentos do semiárido brasileiro, sendo que o umbu e o maracujá-da-caatinga da Coopercuc, são ambas Fortalezas Slow Food.  

Ainda durante o evento, um estande de informações dedicado ao movimento Slow Food, muito bem localizado em frente a Cozinha Show, e uma entrevista na Rádio Jovem, do Programa Pró-Semiárido, ampliaram o alcance do público. Por fim, foi uma oportunidade para observar a interação dos consumidores com as peças de enriquecimento promocional nos estandes de comercialização da feira e o interesse nas inovações digitais adotadas, como as etiquetas narrativas, que utilizam a tecnologia de QR Codes, para aproximar o ambiente real ao virtual e, assim, conectar o campo à mesa, enaltecendo as características dos produtos.
Os interessados têm acesso a lista completa das cooperativas e produtos indicados, todos livres de transgênicos e agrotóxicos, e também podem consultar a localização e os contatos dos estabelecimentos comerciais selecionados, que receberam os materiais de apoio à promoção e rastreabilidade, através do endereço slowfoodbrasil.org.br/sfindica/.

Projeto Slow Food Indica fortalece a agricultura familiar baiana por meio da comunicação

Estratégias de marketing focadas na valorização e divulgação da agricultura familiar baiana garantem visibilidade às organizações produtivas do estado.

Produtos com sabor de biodiversidade em destaque na FEBAFES

Entre os dias 14 e 18 de dezembro, de quarta a domingo, organizações produtivas de todas as regiões do estado da Bahia estarão reunidas na 13ª edição da Feira Baiana da Agricultura Familiar e Economia Solidária, no Parque Costa Azul, na orla marítima de Salvador. Uma oportunidade para aproximar e fortalecer os laços entre campo e cidade, conhecer a origem dos alimentos que chegam à mesa, promover a cultura alimentar dos territórios e expandir as relações de mercado na capital e região metropolitana. 

Sob a perspectiva do Slow Food, muito mais do que produtos, os alimentos bons, limpos e justos são verdadeiros cartões postais da Bahia, cheios de identidade da agricultura familiar, de assentamentos da reforma agrária e de povos e comunidades tradicionais. Nesse sentido, a FEBAFES, considerada uma das maiores feiras do país, é um espaço estratégico para promover a visibilidade à sociobiodiversidade baiana.

Durante o evento, estandes de comercialização estarão sinalizados com peças de comunicação visual do projeto Slow Food Indica, destacando cooperativas e alimentos livres de transgênicos e agrotóxicos, e que possuem, além das qualidades organolépticas e nutricionais naturais preservadas, valores intrínsecos por fomentar práticas e saberes tradicionais das famílias agricultoras e guardiãs dos territórios de identidade da Bahia.

Ainda dentro da grade da programação, na sexta-feira, dia 16, haverá uma mesa “Slow Food Indica” para apresentação do projeto e das ferramentas e estratégias de fortalecimento e valorização adotadas, como a utilização da tecnologia de realidade aumentada, QR Code, para as etiquetas narrativas em formato digital, para dar suporte ao processo de promoção, comercialização e rastreabilidade dos produtos.

Qual a função das etiquetas narrativas em formato digital? As etiquetas contam detalhes da produção, como técnicas de cultivo, criação e processamento, além dos contextos culturais e identitários. Uma ferramenta informativa, que reduz as distâncias geográficas até o consumidor final e cultiva na cidade experiências de consumo responsável, contando uma história viva, que agrega valores verdadeiros ao produto e dá ainda mais gosto e prazer na hora de comer.

CSF Alguidá Salvador

Também estará presente esse ano, com estande próprio e atividades diversificadas na programação da feira, a Comunidade Slow Food Alguidá Salvador pela Ecogastronomia e a Comida de Verdade, com participações de ativistas alimentares nas mesas temáticas e na Cozinha Show.

Slow Food na 13ª FEBAFES 

MESAS

  • Apresentação Slow Food às cooperativas da agricultura familiar: quarta dia 14, 15h às 17h, auditório Umbu 
  • Slow Food Indica: sexta dia 16, 16h às 18h, auditório Café
  • Turismo Ecogastronômico: sábado dia 17, 9h às 11h, auditório Umbu

COZINHA SHOW

  • Da feira aos copos: drinques refrescantes com a Rota da Cachaça: sexta dia 16, às 18h30
  • Arca do Gosto da Bahia: sábado dia 17, às 11h

Produtos com sabor de biodiversidade em destaque na FEBAFES

Entre os dias 14 e 18 de dezembro, de quarta a domingo, organizações produtivas de todas as regiões do estado da Bahia estarão reunidas na 13ª edição da Feira Baiana da Agricultura Familiar e Economia Solidária, no Parque Costa Azul, na orla…

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Cuscuz paulista com ervilha fresca, palmito e ora-pro-nóbis

Foto: Cuscuz paulista, por Camila Fontenele

Rendimento: 12 porções
Tempo de preparo: 40 minutos + 3 horas de geladeira

Ingredientes:

400 g de ervilha fresca
3 xícaras de farinha de milho flocada (biju)
½ xícara de farinha de mandioca grossa
6 dentes de alho fatiados
½ xícara de azeite de oliva
1 alho-poró fatiado fininho
500 g de tomate maduro em cubos
2 colheres de sopa de pimentão amarelo em cubinhos 
2 colheres de sopa de pimentão vermelho em cubinhos
2 colheres de chá de colorau
300 g de palmito picado em cubos
3 xícaras de água ou caldo de vegetais quente
1 xícara de azeitona preta fatiada
40 folhas de ora-pro-nóbis picadas
Cheiro-verde picado a gosto
Coentro picado a gosto (opcional)
Sal a gosto
Pimenta-do-reino a gosto
Tiras de pimentão, folhas de salsinha e azeitonas para decorar

Modo de preparo:

  1. Em uma frigideira, coloque 4 colheres de azeite e a ervilha, salteie até ficar macia, adicione sal e reserve.
  2. Misture as farinhas em uma tigela e reserve.
  3. Unte uma fôrma para cuscuz com azeite e decore a base com ervas, azeitonas e pimentão. Use a criatividade.
  4. Aqueça uma panela funda, coloque ⅓ do azeite e doure o alho com o alho-poró. Em seguida adicione o tomate, os pimentões em cubos, o colorau e refogue por 2 minutos, então adicione a água. Assim que ferver, abaixe o fogo e cozinhe por 5 minutos. Coloque a ervilha, a azeitona, o palmito e deixe cozinhar por mais alguns minutos. Adicione as ervas, a ora-pro-nóbis, sal, pimenta, mexa e comece a acrescentar as farinhas aos poucos, sempre mexendo. Cozinhe até formar uma massa macia e lisa, mexa constantemente para que não queime.
  5. Desligue o fogo e adicione o restante do azeite, mexa bem. Coloque rapidamente toda a massa na fôrma já untada e decorada. Pressione bem com uma colher e alise a superfície, deixe esfriar em temperatura ambiente.
  6. Leve para a geladeira por no mínimo 3 horas, desenforme e sirva.

Dicas: Prepare um dia antes para que os sabores amadureçam. Se usar palmito pupunha fresco, cozinhe-o com a ervilha, anteriormente. Consuma, de preferência, farinha de milho não transgênico.


Esta receita integra o Flora Comestível do Brasil – Receitas Vegetarianas. Rita Taraborelli é cozinheira vegetariana, ilustradora e integrante do Levante Slow Food Brasil. Conheça mais sobre esta publicação acessando aqui (link).

Cuscuz paulista com ervilha fresca, palmito e ora-pro-nóbis

Receita de Cuscuz paulista com ervilha fresca, palmito e ora-pro-nóbis, por Rita Taraborelli. Conteúdo do Flora Comestível do Brasil – Receitas Vegetarianas.

⦿ Boletim Slow Food

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Sataré-Mawé são reconhecidos com “Nobel Verde” em sua primeira edição

Prêmio United Earth Amazônia criado pela família Nobel reforça a necessidade de unir povos e nações da Terra para construir um futuro coletivo e sustentável

texto editado a partir do original por Paola Nano.

A primeira cerimônia de entrega do prêmio da United Earth (também conhecido como “Nobel Verde”) ocorreu em Manaus, no estado do Amazonas, no fim de  fevereiro. Segundo estimativas da ONU, a região abriga 90 nações de diferentes povos indígenas, totalizando cerca de 440 mil pessoas, cada uma com sua língua, sua cultura e seus territórios. Dessas, cerca de 150 milhões são indígenas aldeados.

Um dos prêmios concedidos foi dado aos Sateré-Mawé, cuja comunidade (14.000 pessoas distribuídas em aproximadamente 120 aldeias) tem lutado pela sobrevivência de seu povo e cultura e pela sua soberania alimentar numa região de 8.000 quilômetros quadrados ao redor das nascentes dos rios Andirá e Marau. Apoiar as comunidades indígenas e os seus sistemas alimentares tradicionais significa conservar a biodiversidade do mundo. No caso da Sateré Mawé, Obadias e outros líderes comunitários juntaram-se ao movimento Slow Food em 2002, quando  foi articulada a Fortaleza do Waraná Sateré-Mawé para proteger e valorizar um alimento sagrado com elevado valor cultural, que popularmente chamamos guaraná. 

Em 2020, o waraná dos Sateré-Mawé obteve a Denominação de Origem (D.O.) brasileira. “Conseguir a Denominação de Origem significa certificar que o produto, com suas características ligadas a fatores humanos e naturais, apenas existe naquela área geográfica específica”, explicou Maurizio Fraboni, doutor em socioeconomia  do desenvolvimento, que há décadas trabalha ao lado dos Sateré-Mawé. A D.O. do waraná é ainda mais significativa visto que a bacia hidrográfica formada pelas águas dos rios Andirá e Marau é o banco genético natural do guaraná, o único do mundo. Um santuário ecológico e cultural construído ao longo dos séculos.

Na floresta, os Sateré-Mawé coletam as sementes que caem aos pés das plantas de waraná, trepadeiras selvagens de até 12 metros de altura, e as plantam em clareiras, onde são manejadas e mantidas em arbustos cultivados. Das sementes, por meio de métodos tradicionais de beneficiamento, os Sateré-Mawé obtêm um extrato muito nutritivo que combate o cansaço e estimula as funções cognitivas e a memória. Um suplemento já bem conhecido, hoje comercializado em todo o mundo. Impulsionada pelos negócios, a indústria agroalimentar começou a impor o uso de variedades obtidas por clonagem a muitos agricultores que produzem fora das terras indígenas.

Para administrar o mercado de forma respeitosa e sustentável, foi criado o Consórcio de Produtores Sateré-Mawé (CPSM) que, por sua vez, faz parte do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM), o maior órgão de representação política desse povo. O CPSM é responsável pela gestão, controle e comercialização do waraná em bastão (pão de waraná) e em pó, e representa os produtores Sateré-Mawé em eventos nacionais e internacionais, defendendo a causa indígena em diversos contextos políticos.

Um papel essencial na polinização da planta do waraná é desempenhado pela abelha canudo (Scaptotrigona xantothrica), na língua indígena Sateré-Mawé “Awi’a sese”, que também se tornou Fortaleza Slow Food por sua conexão ecológica com o waraná e o ecossistema. Trata-se de uma abelha muito resistente, que produz um mel extraordinário, com um sabor marcante e selvagem. A conexão dos Sateré-Mawé com essa abelha sem ferrão remonta à época pré-colombiana. O conhecimento tradicional Sateré-Mawé que quando Anumaré Hit subiu ao céu, transformado em Sol, convidou a irmã Uniawamoni para ir com ele. A mulher hesitou, mas depois decidiu ficar na Terra, transformando-se em abelha para cuidar, com os Sateré-Mawé, das florestas sagradas do waraná. Esse mito transmite o que os antigos Mawé já sabiam e que estamos redescobrindo hoje, ou seja, que as abelhas nativas sem ferrão são responsáveis pela polinização de 80% das espécies vegetais da Amazônia. Sem elas, a floresta desapareceria.

Sataré-Mawé são reconhecidos com “Nobel Verde” em sua primeira edição

Prêmio United Earth Amazônia criado pela família Nobel reforça a necessidade de unir povos e nações da Terra para construir um futuro coletivo e sustentável.  texto editado a partir do original por Paola Nano. A primeira cerimônia de entrega do prêmio da…

A volta do CONSEA

Em 28 de fevereiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva completa o segundo mês de seu terceiro mandato, ocorre a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que havia sido extinto no primeiro dia de governo de seu antecessor. Para contextualizar a volta do CONSEA, vale ter presente, ainda que muito sinteticamente, sua trajetória recente. A isso se propõe este pequeno texto.

Em todo o país, o Banquetaço comemora o retorno do CONSEA e da política de combate à fome: participe na sua cidade!

Em 2014, após uma década em que o combate à fome fora colocado como eixo estratégico da agenda das políticas públicas do país, o Brasil deixou de constar do Mapa Mundial da Fome. Segundo Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO (2015), durante aquele período o número de brasileiros considerados em situação de subalimentação reduzira-se em 82%. Tal conquista decorreu “da decisão política de promover o crescimento econômico com distribuição de renda e o desenvolvimento de diversas políticas públicas com grande impacto nas famílias em situação de vulnerabilidade social” (FAO, 2016:1), cabendo destaque à agenda de Segurança Alimentar e Nutricional, em que se inscrevera, em 2003, a recriação do CONSEA.

O CONSEA é órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, de caráter consultivo, formado por um terço de conselheiros/as de governo e dois terços da sociedade civil, aí representados/as agricultores familiares, mulheres agricultoras, movimento agroecológico, agricultura urbana, indígenas, mulheres indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais (povos de matriz africana, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, entre outros), movimento urbano, pesquisadores/as, pessoas com necessidades alimentares especiais, centrais sindicais, grupos religiosos e associações patronais. Nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional –realizadas em 1994, 2004, 2007, 2009, 2011 e 2015– reúnem-se milhares de participantes, deliberando sobre os princípios e ações do CONSEA.

Como parte desse processo, que tem como marcas a participação social e a intersetorialidade, em 2006 foi promulgada a Lei nº 11.346, Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que estabeleceu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (SISAN), composto por: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional –que reúne os ministérios cuja atuação tem impacto na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional–; órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. Ainda compondo o marco institucional de SAN no Brasil, temos que, em 2010, foi criada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e incluído na Constituição Federal o Direito Humano à Alimentação Adequada (CONSEA, 2015).

Foi, assim, estabelecido em lei que “A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (BRASIL, 2006).

Tal conceito foi sempre orientador dos posicionamentos do CONSEA que, desse modo, pautou suas proposições no sentido de: democratização do acesso à terra e garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais, fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica, restrição ao uso de agrotóxicos e rejeição aos cultivos transgênicos, proteção da agrobiodiversidade e reconhecimento dos direitos decorrentes dos conhecimentos tradicionais associados, denúncia das consequências do aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados, reconhecimento de saberes e práticas da alimentação como patrimônio cultural. É nesse quadro que se colocam programas que foram propostos pelo CONSEA para implementação pelo governo federal, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que assegurou a compra institucional de alimentos da agricultura familiar, ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que estabeleceu que 30% de todo o orçamento da alimentação escolar seja destinado à aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar.

Cabe ainda menção, nesse processo, ao avanço representado pela segunda edição do Guia Alimentar da População Brasileira (Ministério da Saúde, 2014), que, tomando por pressupostos os direitos à saúde e à alimentação adequada e saudável, associou a alimentos minimamente processados o atributo da saudabilidade, estabelecendo relação entre obesidade, sobrepeso e doenças crônicas, que crescentemente têm atingido a população brasileira, ao consumo de alimentos processados.

É nesse quadro que se pode entender o lema escolhido para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015: “Comida de verdade no campo e na cidade”. O manifesto aprovado pela 5ª CNSAN afirma que:

“A comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta, contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana, povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, demais povos e comunidades tradicionais e camponeses, desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos. Comida de verdade começa com o aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas. É produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais e suas especificidades regionais. É livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes. Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado. Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Precisa ser acessível, física e financeiramente, aproximando a produção do consumo. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia. Promove hábitos alimentares saudáveis no campo, na floresta e na cidade. Comer é um ato político. Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. Não mata nem por veneno nem por conflito. É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e a paz entre os povos.”

Após um golpe de estado que, em 2016, estancou os avanços sociais que vinham sendo conquistados pela sociedade brasileira; uma pandemia e um governo genocida (2019-2022), chegamos a uma situação em que mais da metade da população brasileira convive com a insegurança alimentar, sendo que 33,1 milhões passam fome (Rede Penssan, 2022). Esse é o tamanho do desafio que se apresenta, mas também da energia e motivação que mantiveram ativos, por todo o país, durante o período em que o CONSEA esteve extinto, conselhos estaduais e municipais de Segurança Alimentar e Nutricional, movimentos sociais, militantes, estudiosos/as… gente que agora, mais uma vez, se agrega na luta pela comida de verdade, para toda a população brasileira: o CONSEA voltou!

Referências

BRASIL. Lei nº 11.346, 2006.

CONSEA. Comida de verdade no campo e na cidade: 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – relatório final, Brasília, 2015.

FAO. O estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, Brasília, 2015.

FAO. Superação da fome e da pobreza rural: experiências brasileiras, Brasília, 2016.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia Alimentar da População Brasileira, 2014.

REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan, 2022.

* Este texto foi elaborado a partir de extratos do trabalho escrito em parceria com Carmen Janaina Machado, “Elementos para uma agenda de pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional à luz da Antropologia”, publicado em 2019, no México, como capítulo do livro Inseguridad alimentaria y políticas de alivio a la pobreza. Una visión multidisciplinaria , organizado por Blanca Rubio e Ayari Pasquier.

* Renata Menasche é Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e conselheira do CONSEA.

A volta do CONSEA

Em 28 de fevereiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva completa o segundo mês de seu terceiro mandato, ocorre a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que havia sido extinto no primeiro dia…

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